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O Passado triste do Bom Retiro

Rua Itaboca cerca 1950
Rua Itaboca, atual Prof. Cesare Lombroso cerca de 1950.

Por Edison Loureiro.

Em setembro de 2019 o Bom Retiro foi eleito pela revista britânica Time Out como o bairro mais “cool” do Brasil e o 25o do mundo. Concorde-se ou não com os critérios utilizados pela revista, o Bom Retiro tem lugares agradáveis para visitar, como a Pinacoteca, Sala São Paulo, a Estação da Luz, além de restaurantes variados com comida judaica, coreana, grega, e um comércio atacadista de moda vibrante.

Quem passa hoje pelas ruas José Paulino, Prof. Cesare Lombroso, Aimorés e imediações não pode deixar de notar as lojas chiques, a maioria com nomes chamativos e grifes elegantes. Os manequins nas vitrines exibem as últimas tendências da moda, principalmente a feminina.  Calcula-se que 55% da moda feminina do Brasil saia do Bom Retiro. A presença de imigrantes coreanos é preponderante neste comércio.

O Bom Retiro sempre foi um bairro de imigrantes. A própria Hospedaria de Imigrantes, hoje Museu da Imigração, funcionou inicialmente no bairro de 1882 a 1887. Hoje os imigrantes são os coreanos e bolivianos, mas inicialmente a maioria era de italianos e na década de 1930 foi o bairro judeu por excelência.

Mas com certeza, se a tal revista britânica fizesse a pesquisa na década de 1940, passaria longe do Bom Retiro.

As vitrines que se viam nas ruas Aimorés e Prof. Cesare Lombroso seriam bem diferentes. Esta última então nem tinha este nome, chamava-se Itaboca. E só a menção a este nome, naquela década já faria os mais pudicos corarem de vergonha.

Acontece que após 1937, apesar do golpe do Estado Novo e instauração da ditadura getulista que impôs repressão e controle severo sobre os costumes, a prostituição alastrava-se pelo centro da cidade.

Na verdade, não havia muitos protestos nos jornais contra os bordeis mais elegantes, as chamadas pensões chics nem os cabarés, pois estes eram frequentadas inclusive pelos altos escalões. A preocupação era com o baixo meretrício, a exposição e convites feitos das janelas pelas moças, às vezes em trajes menores, e mesmo o trottoir.

A prostituição, que no início do século XX se concentrava nas estreitas  Rua Líbero Badaró e São João, espalhou-se lentamente com o alargamento dessas vias e, em 1930, concentrava-se na Rua Amador Bueno (atual Rua do Boticário), Rua Ipiranga (ainda não tinha sido alargada) e Timbiras.

Na Av. S. João começava a se formar a Cinelândia Paulistana que se tornava importante local de lazer familiar com cafés, confeitarias, salões de dança, etc. Havia também planos de reurbanização de toda a área. O famoso Plano de Avenidas de Prestes Maia, o que realmente acabou acontecendo.

No final de 1939 o interventor federal Adhemar de Barros tomou a decisão de confinar todas as prostitutas do chamado baixo meretrício em uma zona restrita e escolheu para recebê-las justamente as ruas Aimorés e Itaboca. Essas ruas formam uma ferradura e o paredão das ferrovias Sorocabana e Santos-Jundiaí limitavam a entrada das ruas e favorecia o controle de quem entrava ou saía.
R Aimorés cerca 1950
Rua Aimorés cerca de 1950

 

Conforme alguns historiadores uma das alegações de Adhemar de Barros foi: “É produto vosso, fica para vocês”. Por que “produto vosso”?

Acontece que o Bom Retiro, na década de 1930 ficou também com a fama de bairro das polacas. Desde o final do século XIX e até o começo da década de 1930 chegaram a grandes cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Buenos Aires e Nova Iorque prostitutas de origem judaica. Eram trazidas em sua maioria por uma máfia internacional formada por judeus poloneses e russos conhecida como Zwi Migdal. Os agenciadores percorriam regiões empobrecidas do Leste Europeu, casavam-se no religioso com as moças e as traziam para as cidades citadas com promessa de uma vida melhor. Somente na chegada é que iriam conhecer o triste destino que as aguardava. Em meados da década de 1920 os cafetões responsáveis por essa rede de tráfico no Rio de Janeiro e São Paulo foram identificados e presos ou deportados. Mas, como a prostituição não era crime, as prostitutas ficaram por aqui. Algumas tornaram-se cafetinas e donas de pensão. Como eram rejeitadas pela comunidade judaica por motivos religiosos, formaram sua própria comunidade de ajuda mútua, a Sociedade Feminina Religiosa e Beneficente Israelita. Tinham sua própria sinagoga na Rua Ribeiro da Silva e chegaram a ter também seu cemitério exclusivo em Santana, O Chora Menino.

Historiadores explicam também a escolha de Adhemar pelo bairro judeu por uma questão que era importante para Getúlio Vargas: a necessidade de controle e vigilância sobre o que consideravam um gueto étnico com uma “perigosa concentração de judeus”. Lembrando sempre que o Brasil vivia sob uma ditadura, às vésperas da II Guerra e o antissemitismo era disseminado. O próprio instrumento político para o golpe de 1937 que instaurou o Estado Novo foi o famigerado Plano Cohen, uma suposta conspiração judaico-comunista que depois se provou uma fraude.

Mas se a expansão da prostituição para os lados da Rua Timbiras foi lenta, a ocupação das duas ruas do bom Retiro foi de supetão, forçada e violenta.

É difícil encontrar registros oficiais destes fatos, jornais da época não publicaram uma palavra a respeito devido à forte censura do Estado Novo. O jornal O Estado de S. Paulo ficou sob intervenção de 1940 a 1945. Assim, para tentar reconstituir os fatos só nos resta recorrer às memórias deixadas por algumas testemunhas da época, apesar das falhas nas lembranças.

Um desses relatos é feito através da carta de um leitor do jornal O Estado de S. Paulo publicada em 30 de maio de 1997 na qual nos relata que a cena “… foi vista por mim, na ocasião um adolescente, estudante a caminho do colégio que, ao descer do bonde na Rua José Paulino, se deparou com inusitada movimentação de caminhões de mudanças e gente por todos os lados nas mencionadas Ruas Aimorés e Itaboca, até então habitadas somente por famílias judias. Mulheres sumariamente vestidas, muitas apenas de calcinha e sutiã, facilmente identificáveis como prostitutas, inclusive algumas polacas, carregavam móveis para o interior das casas ou jogavam utensílios dos até então moradores pelas janelas e portas. Homens, mulheres e crianças saíam das casas com seus bens ou os apanhavam nas calçadas, levando-os do jeito que podiam para a casa de parentes e conhecidos, em busca de abrigo provisório. Contrastando com os gritos e a algazarra das mulheres que chegavam, o silêncio das pessoas que abandonavam suas casas, não por acaso judeus, carregando camas, colchões, móveis, roupas, panelas. Enquanto isso, policiais em pequenos grupos a tudo assistiam, desencorajando qualquer resistência das pessoas que estavam sendo despejadas. Passei o resto da tarde assistindo à instalação da zona do meretrício no bairro judeu, entre curioso e surpreso, lembrando os noticiários cinematográficos que mostravam prisões e desocupações de casas de judeus na Alemanha e países ocupados pelas forças nazistas”.

O Anhanguera Futebol Clube, um time de várzea, resolveu uma noite comemorar a vitória do campeonato na Rua Itaboca e conta seu memorialista, da surpresa que tiveram quando, no meio da farra e fogos de artifício, já madrugada, chegaram os camburões com mulheres e as despejaram pelas ruas. Talvez mais de cinquenta, “o auge da noite se deu com nossos atletas valsando no meio da rua com cabrochas nuas”.

Os camburões da polícia simplesmente invadiam as pensões  declaradas “irregulares” e, sem aviso prévio, embarcavam todos para a zona confinada. Clientes e outros moradores que escapassem como pudessem.

Nahum Mandel, morador do bairro na sua infância, conta que “voltando para casa do Grupo Escolar deparou-se com um reboliço de mulheres nuas, e soldados e civis abraçando-as e rindo. Um Carnaval surrealista! As lojas estavam cerradas e tive que entrar em casa pelo quintal”.

A zona do meretrício do Bom Retiro, a única instalada por decreto do governo em São Paulo, funcionou por 13 anos.

Mas o que parecia ser uma solução logo se mostrou um problema maior. Já em dezembro de 1940 o jornal A Platéia reclamava que os encarregados de policiar a zona não sabiam como resolver “o escândalo que se vem verificando, especialmente, aos sábados e quando a extraordinária multidão que desfila por essas ruas da boemia na falta total de mictórios despeja as urinas pelas ruas”. Com o passar do tempo a região tornou-se um ponto de concentração de todo tipo de marginais. Durante o dia, principalmente nas manhãs, era uma rua tranquila, “frequentada por leiteiros, padei­ros, verdureiros, catadores de papel e vendedores dos mais variados que davam uma feição bastante diversa da movimentação noturna. Ao entardecer, no entanto, as mulheres iam se postando junto às portas e janelas como em ‘mostruários’ à espera do desfile de homens que aumentava com a chegada da noite. Os convites e os gestos aos passantes eram os mais depravados possíveis. Frases “abomináveis” e “termos repelentes de gíria” eram proferidos mostrando bem até que grau de degradação humana havia chegado o mulherio”, como nos conta Nuto Santana em seu livro “Rua Aimorés”.
vitrine Rua Itaboca
As “vitrines’ da zona de meretrício do Bom Retiro

Paulinho Perna Torta, personagem de crônica homônima de João Antônio, acrescenta: “… era um formigueiro na rua Itaboca e dos Aimo­rés. Até gente morria. Tiro, facada, navalhada, ferrada e todo o resto de acompanhamento. Mas era um bra­seiro isolado e não bulia com ninguém fora dali”. É verdade, o noticiário policial da década de 1940 e do começo da de 1950 pipocava com informações de todo tipo de crime e algazarras na zona, muitas com envolvimento de soldados do Exército e da Força Pública. Isso tudo acontecia principalmente na Rua Itaboca, pois existia uma espécie de hierarquia entra as duas. Enquanto na Itaboca atuavam as “nacionais”, compostas por mulatas e caboclas pobres, sem instrução e que moravam no local e viviam as agruras do jugo das cafetinas e cafetões, na Aimorés concentravam-se as mais bonitas e bem cuidadas que normalmente moravam longe dali.

Um levantamento realizado em 1943 visando o controle de sífilis contou 1.084 meretrizes morando na zona confinada, mas o autor do estudo, José Martins de Barros, estimou em 1.500 mulheres trabalhando no local, visto que muitas moravam em outros bairros. Além disso, a prostituição começou a espalhar-se  por outras ruas como a Carmo Cintra e a Ribeiro de Lima.

Assim permaneceu a situação até 1953, quando, após intensa campanha, o prefeito Jânio Quadros suspende, por decreto, todos os alvarás dos bares da ruas Itaboca, Aimorés, Ribeiro de Lima e José Paulino. O governador Lucas Nogueira Garcez, já havia mandado assistentes sociais para a região para o trabalho de convencimento das mulheres para deixar a “profissão” ou encontrar outro abrigo.

A desocupação final foi feita tal qual a ocupação. No dia 30 de dezembro o governador Nogueira Garcez anuncia a ordem para a extinção da zona de meretrício. No dia seguinte a Força Pública e a Polícia de Costumes cerca o local. Cordões de isolamento deixam claro que homem não entra. Ainda havia 161 prostíbulos e 650 mulheres no local.

Logo as mulheres começam a sair á rua e protestar, algumas gritando e rasgando as roupas. Outras atiram móveis e utensílios pelas janelas. Na confusão generalizada uma prostituta chamada Antônia, moradora da Rua Aimorés tem um colapso e morre no local. A notícia se espalha causando mais revolta. Algumas conseguem furar o cerco e vão para a Rua José Paulino, Arlinda Guiomar e Alice invadem um comércio e são repelidas pelo proprietário que se armou com uma barra de ferro e as duas primeiras são feridas gravemente e encaminhadas ao Hospital das Clínicas. Por fim a chegada do Batalhão de Choque e do Corpo de Bombeiros acaba com a confusão com jatos d’água e cassetetes.

Alguns dias depois o diretor do Serviço Social do Estado de São Paulo diria numa entrevista que “… dentro de poucos dias já ninguém se lembrará da antiga zona do baixo meretrício do Bom Retiro e as infelizes que lá morriam aos poucos terão vida longa e melhor, que é o que elas merecem”.

Ele acertou em parte, pois poucos se lembram do passado triste do Bom Retiro, mas o baixo meretrício mudou-se para a Boca do Lixo e logo se espalhou por toda a cidade.

 

Fontes
Paula Karine Rizzo, O Quadrilátero do Pecado: A Formação da Boca do Lixo em São Paulo na Década de 50, 2017.
Enio Rechtman, Itaboca, Rua de Triste Memória: Imigrantes Judeus e o Confinamento da Zona de Meretrício (1940 a 1953), 2015.
Sofia Villela Borges, Corpo Estranho Confinado, 2018
João Antônio, Paulinho Perna Torta em Leão de Chácara: João Antônio, 2010.
Guido Fonseca, História da Prostituição em São Paulo, 1982.
Margareth Rago, Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo, 1890-1930, 1991.
Nahum Mandel, Testemunho de um sonho, 2009.
Jornal Folha de São Paulo de 6 de agosto de 1998.
Jornal O Estado de S. Paulo de 20 de setembro de 2019.
Jornal O Estado de S. Paulo de 3 de janeiro de 1954.
Jornal O Estado se S. Paulo de 30 de maio de 1997.

  1. CASSIO ROGERIO SABINO
    28/09/2019 às 01:11

    Boa noite

    Vc tem mais informações sobre a formação do Cemitério Chora Menino

  2. Walter
    28/09/2019 às 09:00

    Muito interessante. Um excelente trabalho de pesquisa, Edison. Parabéns!

  3. DNA in Action Informática
    03/10/2019 às 02:18

    parabens pela matéria

  4. Leda Garcia Godinho
    12/05/2020 às 18:54

    Há um livro muito interessante que fala dessas coisas acontecidas nessa região: Bôca do Lixo, de Hiroito de Moraes Joanides. Creio que o Paulinho de um Perna Torta , do João Antônio, foi baseado nesse livro.

  5. Octávio Augusto
    13/05/2020 às 10:51

    Excelente artigo!

  6. Yara Virginia da Mata
    13/05/2020 às 15:57

    sou do Brás- Pari, bairro vizinho ao Bom Retiro. Me lembro vagamento que minha mãe e minhas tias contavam sobre os problemas das Ruas Itaboca e Aimorés. O Bom Retiro que conheci, nos 70, 80, 90, já era um bairro modernizado e onde se comprava roupas de qualidade (como na Rua Oriente, Brás, como nas décadas de 60 a 90). Nos final dos anos 70 até o ano 2000, trabalhei no bairro da Água Branca, e voltava para casa, de carro, passando pela Av. Duque de Caxias. Na esquina da Av. Rio Branco, me safei algumas vezes de assalto praticado por menores. Resolvi então mudar o itinerário e voltar pelas Ruas Aurora, Vitória, etc. onde havia um número grande de prostitutas nas portas dos hotéis baratos da região. Graças a Deus nunca tive nenhum problema.
    Yara da Mata

  7. Antonio Carlos da Silva
    17/07/2020 às 03:23

    É uma história tristíssima, mas muito interessante.

  8. Cleide Maria Ferreira
    24/07/2020 às 09:56

    Eu sabia um pouco dessa história.

  9. Isaac Liberman
    20/12/2020 às 11:21

    Parabéns pela matéria! Não concordo com o título da mesma, tristeza é ver o bairro wue amo e cresci na situação deplorável que se encontra hoje.

  10. Isaac Liberman
    20/12/2020 às 11:23

    Parabéns pela matéria! Não concordo com o título da mesma, tristeza é ver o bairro que amo e cresci na situação deplorável que se encontra hoje.

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