Arquivo

Archive for the ‘Sem categoria’ Category

A Capela dos Enforcados – História, Tradição e Lendas

Atual comparativo

Por Edison Loureiro

Seu nome na verdade é mais longo: Capela da Santa Cruz das Almas dos Enforcados, mas todos a chamam de Igreja dos Enfocados ou Igreja das Almas e fica na Praça da Liberdade. Sua criação vem de uma tradição antiga que existia, ou talvez ainda exista: Fincar uma cruz no local onde ocorreu uma morte violenta seja por crime ou acidente. Daquela simples cruz, às vezes nascia uma devoção e alguém construía uma capelinha cobrindo a cruz.

Em São Paulo existiam algumas capelas que surgiram dessa forma, a mais famosa talvez tenha sido a Capela da Santa Cruz do Pocinho, que ficava na atual Avenida Vieira de Carvalho, onde todo ano, no dia 3 de maio, era realizada a festa da Santa Cruz, muito concorrida. Hoje desapareceram as capelas e as festas. Só resta mesmo esta do título.

A história é antiga. Remonta ao ano de 1821 quando, em abril, D. João VI volta a Portugal com toda a corte. Existia nesta época uma rixa entre brasileiros e portugueses em especial nas tropas. Os portugueses recebiam soldos mais altos e tinham preferência na ordem de recebimento. Aos soldados brasileiros ficavam as sobras, que nem sempre eram suficientes e, com isso, ficavam sempre com o pagamento em atraso por meses, às vezes anos. D. João VI, numa tentativa de pacificar esta situação decretou a igualdade nos soldos e eliminou a ordem de preferência. Mas como obedecer ao decreto se na partida o rei raspou o fundo do Tesouro e deixou D. Pedro, príncipe regente, na penúria? Na prática tudo permaneceu como antes.

Em três de junho daquele ano os soldados do Segundo Batalhão de Caçadores, estacionado em São Paulo, se revoltaram e exigiram o recebimento dos soldos atrasados. A revolta não teve grandes consequências. Tudo foi resolvido com uma conversa enérgica e convincente dos líderes, que acabaram acatando a exigência dos revoltosos, a situação se normalizou e ninguém foi punido.

Alguns dias depois, em Santos, talvez pelo exemplo do sucedido em São Paulo, aconteceu coisa parecida, mas com graves consequências. Na noite de 28 para 29 do mesmo mês, uma sexta-feira, os soldados se amotinaram, arrombaram o arsenal, tomaram as armas e munições e saíram em revolta pela vila. Líderes políticos locais e o comandante do Batalhão foram detidos, conduzidos ao quartel e obrigados a fazer o pagamento dos soldos atrasados. Não satisfeitos os revoltosos espalharam-se pela pequena vila de Santos assaltando moradores e o comércio local. Houve luta com marinheiros portugueses, tiros, feridos, mortes e mesmo disparos de artilharia contra um navio português que se encontrava no porto. O caos prosseguiu por toda a semana aterrorizando a vila de Santos, até que se enviou a tropa estacionada em São Paulo, a mesma que se rebelara dias atrás, que acabou controlando a situação.

No inquérito que se seguiu dividiram-se os amotinados em dois grupos: o dos cabeças do motim juntamente com os que cometeram mortes e roubos e os outros menos culpados. Estes ficaram para ser julgados depois, mas foram separados em grupos e enviados para trabalhos forçados em obras nas estradas. Acabariam sendo perdoados por D. Pedro em 1822 e reincorporados à tropa.

Quanto ao primeiro grupo, após o Conselho de Guerra e revisão por uma comissão nomeada pelo Governo Provincial, do total de 33 réus, sete foram condenados à pena capital e os outros receberam outras punições. Decidiu-se também que aqueles nascidos no litoral, em número de cinco, seriam executados em Santos imediatamente, e os dois nascidos no Planalto seriam executados em São Paulo.

Como não havia forca em Santos, os cinco condenados foram executados em uma das vergas do navio “Boa Fé”, o mesmo que havia sido alvo das cargas de artilharia dos revoltosos.

Os dois nascidos em São Paulo acompanharam o grupo daqueles que vieram cumprir suas penas de galés no Planalto. Aqui chegando foram presos na Cadeia Pública que ficava no Largo de São Gonçalo, atual Praça João Mendes. O prédio, que abrigava também o Senado da Câmara ficava exatamente onde hoje começa o Viaduto D. Paulina, ao lado da Igreja de S. Gonçalo.

Nesse meio tempo construía-se a forca em São Paulo, pois a que existira antes estava deteriorada por falta de uso. Era localizada no Morro da Forca, onde hoje é a Praça da Liberdade. O morro seria aplainado muitos anos depois e sua terra usada nos aterros da baixada do Glicério. Ficou pronta em sete de setembro daquele ano e as despesas todas montaram a 76. 620 réis. Entre as despesas, duas curiosidades: 640 réis para duas meadas de barbante para a corda e 480 réis ao barbeiro para afiar o cutelo. Não existia corda pronta para vender em São Paulo. Mas para que afiar o cutelo tratando-se de enforcamento? A explicação está na cerimônia macabra que era a pena capital. Após o enforcamento, a vítima era retirada da laçada e o carrasco a decapitava. O corpo então era enterrado no cemitério dos Aflitos, uma quadra e meia abaixo. A cabeça era salgada, colocada num caixão e levada para a cadeia. Depois seria transportada e exibida em outras vilas do interior da província como exemplo.

Os infelizes que subiram a serra para o suplício eram o cabo Francisco José das Chagas e Joaquim José Cotindiba. Este não era conhecido do povo de São Paulo, mas o primeiro era filho de pessoas estimadas e muito popular entre a pequena população da cidade. A família, humilde, residia numa casa simples da Rua das Flores, atual Silveira Martins, onde Chaguinhas, como era conhecido, passara a infância.

No dia 20 de setembro, após os condenados passarem o dia anterior em retiro espiritual no oratório da Cadeia com assistência de um sacerdote, colocaram as alvas, espécie de camisolões, e foram levados ao Morro da Forca. Uma caminhada de uns 200 metros.

O primeiro a subir foi Cotindiba. As mãos foram atadas às costas e depois de encapuzado foi ajustada a laçada ao pescoço. O enforcamento deu-se sem incidentes. Depois foi Chaguinhas que passou pelo mesmo ritual sinistro. Mas quando foi retirada a tábua que o sustentava e o corpo caiu no vazio, a corda arrebentou! O povo clamou por Misericórdia e os membros dessa Irmandade cobriram-no com sua bandeira para dar-lhe imunidade. Mas os apelos não surtiram efeito, as autoridades ignoraram a tradição e optaram pela pena exemplar. Mais uma vez Chaguinhas sobe ao patíbulo e enfrenta o ritual da morte. E mais uma vez, para surpresa geral, acorda se arrebenta. Outra vez clama o povo à Comissão do Governo pelo perdão tradicional. E mais uma vez é negado e desta vez, por ordem de Martim Francisco de Andrada, toma-se um trançado de couro no Matadouro à guisa de corda para o suplício. Chaguinhas é finalmente executado.

Ao povo consternado e convencido que um inocente havia sido supliciado só restou orar pela alma dos enforcados. Conforme o antigo costume alguém providenciou uma cruz que foi colocada ao lado da forca. Outros providenciaram uma pequena mesa onde sempre se acendiam velas pelas almas. Conforme o local ia se alterando e sendo habitado, a cruz e sua mesa foram sendo deslocados até o local onde hoje está a Capela atual.

Alguns documentos relativos a este processo estiveram extraviados por longo tempo. Historiadores do início do século XX não tinham certeza nem da data em que foi cumprida a pena. Assim muitas lendas foram sendo criadas para preencher os vazios da história.

Uma delas diz que o laço de couro utilizado por último foi tomado à força de um boiadeiro que passava pelo local. Outra diz que o laço de couro também se arrebentou e o infeliz foi morto a pauladas no chão. Por muito tempo imaginou-se que Chaguinhas foi substituído por um cadáver e tivesse escapado com ajuda de cúmplices indo viver em Campinas. Os documentos que esclareceram inclusive a data da execução somente foram localizados e tornados públicos em 1922, ou seja, após cem anos. Outra lenda diz que quando os laços arrebentaram por três vezes, o povo gritava “Liberdade, Liberdade!”, daí originou-se o nome do largo e do bairro. Na verdade o nome Liberdade originou-se do Chafariz da Liberdade que esteve no largo por um tempo e está relacionado com a abdicação de D. Pedro I. Dizem ainda que Chaguinhas foi o último enforcado, o que não é verdade. Muitos ainda seriam supliciados em São Paulo, principalmente escravos revoltados, até a extinção da pena de morte em 1889.

Apesar de algumas fontes indicarem a construção da capela em 1887, o Arquivo da Cúria Metropolitana registra a fundação em 1891, sendo sua primeira missa realizada em 1 de maio daquele ano.

O culto começou antes mesmo da inauguração da capela, em data incerta, com as festas promovidas por Olegário Pedro Gonçalves e Chico Cego, que viviam nos arredores. Mesmo antes da Abolição, Antonio Bento já ajudava a promover as festividades.

Chaguinhas capela enforcados Diário Nacional 19-08-1928 recorte
Foto publicada no jornal O Diário Nacional de 19-08-1928

A capela original, de taipa de pilão foi totalmente demolida em 1926, sobrando apenas a escadaria frontal e a grade. Uma nova foi construída e inaugurada em 1928. Esta segunda capela teve sua fachada e frontão reformados em data incerta, passando a ter a aparência mais próxima da atual.

DN 27-04-1932 recorte
Foto publicada no jornal Diário Nacional de 27-04-1932

Sua posição em relação à Avenida da Liberdade era mais recuada, no centro do quarteirão e ficava ao lado de uma antiga delegacia. Com o alargamento da Rua da Liberdade no final da década de 1940, a capela ficou mais próxima da atual avenida. Restou uma pequena faixa de terreno separando a capela da avenida onde era a delegacia. Em 1955 essa faixa de terreno foi cedida à cúria Metropolitana que aí construiu, em 1958, o pequeno edifício que lá se encontra. Também neste ano iniciou-se a reforma final na qual foi construída a torre e as configurações atuais.

Igreja da Santa Cruz das Almas dos Enforcados 1957
Foto de 1957, por Hiyoshi Hiratsuka, do acervo de Maria Lourdes Pereira

Fontes:

Sentenças sobre Chaguinhas, Djalma Forjaz, Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Vol . 23 pag. 531.
Dois documentos sobre a sedição militar ou “levante” do 1 ° batalhão de caçadores da praça de Santos em 1821, Benedito Calixto, Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Vol . 17 pag. 435.
Jornal Diário Nacional de 11-04-1928.
Jornal Diário Nacional de 19-08-1928.
Jornal Diário Nacional de 27-04-1932.
O Enforcamento de Chaguinhas, Nuto Sant’Anna em O Estado de S. Paulo de 30-07-1935.
Rebelião em Santos, Nuto Sant’Annna em Correio Paulistano de 19-02-1941.
A lenda do Chaguinhas, Paulo Cursino de Moura em São Paulo de Outrora.
Jornal O Estado de S. Paulo de 13-12-1955.

Categorias:Sem categoria

A Sinhá da Rua das Sete Casas

B-Paranapiacaba-1925Praça da Sé em 1925, à direita a R. Barão de Paranapiacaba

Por Edison Loureiro

A Rua Barão de Paranapiacaba teve, através dos tempos, várias denominações: Travessa do Padre Capão (início do século XIX), Rua “da Mexia” ou “do Mexim”, Rua das Sete Casas e, a partir de 28/11/1865, por proposta do vereador Malaquias Rogério de Salles Guerra, Travessa da Caixa D’Água (a antiga caixa d’água ficava na esquina com a Rua Quintino Bocaiúva). No dia 01/12/1907, o vereador Carlos Garcia solicitou a alteração desta denominação para “Barão de Paranapiacaba” e justificou: “Trata-se de um velho paulista, conhecido, tradicional nas letras brasileiras”.

Hoje é a “ruas das joias”, tamanha a quantidade de joalherias concentradas em seu curto trecho.

Devo a Affonso Schmidt (1890 – 1964), excelente cronista do passado a seguinte história sobre esta rua.

Por volta de 1850 existia na R. Barão de Paranapiacaba uma república de estudantes. Naquele tempo houve uma epidemia de tifo na cidade que causou várias vítimas.

Como podem imaginar médicos eram raros e escassos os medicamentos. Poucos se aventuravam a tratar dos doentes.

Certa manhã, quem nas redondezas estivesse, poderia ver uma Sinhá, aí pelos seus 55 anos, que residia num palacete da então Rua Alegre, atual Brigadeiro Tobias, adentrar apressada a tal república da Rua das Sete Casas, como ainda era conhecida. Tinha sido avisada que havia um estudante doente que morreria por falta de cuidados.

Diz o cronista que a tal senhora providenciou remédios e passou três dias e três noites cuidando do estudante. O curioso é que ela nem conhecia o estudante, somente depois é que ficou sabendo que seu nome era Affonso Celso de Assis Figueiredo, o futuro Visconde de Ouro Preto.

O nome da Sinhá?

Era Domitila, a nossa conhecida Marquesa de Santos, que morreu há 150 anos.

A Rua das Casinhas

Casinhas

1862 – Largo do Tesouro. A Rua das Casinhas ficava ao lado do prédio de 4 pavimentos, de Domingos de Paiva.

Por Edison Loureiro

Em 1773 a Câmara Municipal ergueu seis quartos enfileirados que foram arrendados como mercado. Eram as casinhas. Cada uma tinha banquetas de tábua, pesos, balanças e ganchos de ferro. Aqui eram comercializados feijão, milho, toucinho, carne, aguardente, fumo, rapadura, etc.. Ficavam no nosso lado direito na foto e tomavam todo o começo da atual Rua do Tesouro, que então avançava um pouco mais na direção da Rua XV de Novembro.

Em 1797 as casinhas foram demolidas e depois reconstruídas. Toda a Rua das Casinhas e parte do largo mais abaixo tinha intenso movimento de negros, escravos de ganho ou forros, sitiantes, caboclos, comerciantes e fregueses. Mas não vá o amigo, ou amiga, que nos acompanha esperar alguma noção de ordem e higiene no local.

Auguste de Saint Hilaire, o viajante da década de 1820 que esteve por um bom tempo em São Paulo, descreveu o local:

“Em S. Paulo não são encontrados negros a percorrer as ruas, como no Rio de Janeiro, transportando mercadorias sobre a cabeça. Os legumes e as mercadorias de consumo imediato são vendidos por negras que se mantêm acocoradas na rua, que, por motivo de tal comércio, tomou o nome de Rua da Quitanda. Quanto aos comestíveis indispensáveis, tais como farinha, toucinho, arroz, milho, carne seca, os mercadores, que os vendem estão, em sua maior parte, estabelecidos numa única rua denominada Rua das Casinhas, porque, efetivamente, cada venda forma uma pequena casa isolada. Não é, evidentemente, nessas vendas, que se podem encontrar a limpeza e a ordem: são obscuras e enfumaçadas. O toucinho, os cereais, a carne estão atirados em promiscuidade, e não existe ainda, nem por sombra, aquela arte com que nossos mercadores de Paris sabem dar um aspecto agradável aos alimentos mais grosseiros”.

À noite, porém mudava o cenário. O mesmo viajante francês nos conta que: “… os animais de carga e os compradores cedem lugar a verdadeiras nuvens de prostitutas de baixa classe, atraídas pelos camaradas [servidores livres] e pelos roceiros, que elas tentam pescar em suas redes”.

Vida longa tiveram as casinhas, duraram até 1874, quando então foram demolidas, pois a municipalidade tinha intenção de enfim construir um mercado de verduras, neste mesmo local, a execução deste projeto foi cheia de trapalhadas, mas, como dizia Júlio Gouveia quando apresentava o Sítio do Pica-Pau Amarelo, “isto já é outra história que fica para outra vez…”.

Categorias:Sem categoria

Os Crimes do Preto Amaral

frente e perfil

Por Edison Loureiro

Na tarde do dia 4 de janeiro de 1927, José Augusto do Amaral estava nas imediações do antigo Mercado Municipal1 da Rua 25 de Março como sempre fazia nos últimos dias. A temperatura andava amena naqueles dias de verão paulistano, em torno de 24o e o céu encoberto. Sem ocupação fixa, Amaral vivia a cata de biscates, arriscando a sorte no jogo pelos arredores ou mesmo fazendo alguns pequenos furtos. Era um negro de estatura mediana, 56 anos e muito musculoso.

Mas havia várias noites que Amaral não conseguia dormir direito. Via fantasmas, especialmente o daquele jovem de seus 17 ou 18 anos. Outra noite foi dormir num albergue da Rua Mauá. Era um quarto com quatro camas, mas ele estava sozinho. De madrugada sentiu-se sufocado, abriu os olhos e viu a figura do jovem olhando fixamente para ele. Assustado, levantou-se e abriu a janela, mas com a claridade da lua arregalou os olhos, pois percebeu uma mão forte passar pela janela à procura de seu pescoço.

Apavorado, vestiu-se às pressas e saiu do quarto em busca do proprietário.

– Abra a porta, preciso viajar!
– Está bêbado? São três horas da manhã! Volte a dormir.

Amaral obedeceu, voltou ao quarto e deitou-se. Mas continuou a ver o jovem lá, sentado numa das camas desocupadas com o olhar fixo nele. Correu de volta ao proprietário e exigiu que abrisse a porta, saiu e perambulou pela cidade, sem rumo até o amanhecer.

Vivia atormentado por essas visões. Por este motivo não ofereceu resistência nem tentou fugir quando viu os policiais. Entregou-se calmamente quando, às quatro horas da tarde, eles o encontraram.

…………………………………………………………………………………………………

Tudo começou no entardecer do primeiro dia do ano de 1927 num subúrbio de São Paulo. No quilômetro 39 da estrada velha de São Miguel, perto de uma localidade chamada Villa Esperança2.  Foi lá que um passante avistou o cadáver de um garoto vestido somente com os restos de uma camisa meio escondido no mato à beira do caminho. Correu em busca do posto de gasolina que ficava perto, a uns dois quilômetros da Penha, era o último que havia naquela velha estrada até São Miguel.

A comunicação demorou a chegar à Repartição Central da Polícia. Somente às 21h o comissário de serviço ficou sabendo da ocorrência, e, pelas circunstâncias do comunicado achou mais conveniente notificar a Delegacia de Segurança Pessoal do Gabinete de Investigações. Assim é que às 23h chegaram as autoridades e mais o médico legista, Dr. Azambuja Neves ao local indicado. Um pequeno atalho da estrada de S. Miguel.

O menino era branco, muito claro, de olhos verdes e cabelos castanhos, aparentava ter treze anos e vestia apenas uma camisa xadrez curta e esfarrapada. No pescoço um cinto de brim estava fortemente amarrado. O médico constatou que fora estrangulado e que havia sinais de estupro. O crime ocorreu entre 15 e 16 horas. Devido à escuridão da lua nova e o tempo encoberto, não foram encontradas as outras vestes do menino naquela noite.

Já eram duas da madrugada quando voltaram à delegacia e o corpo removido para o necrotério da Repartição de Polícia, na Rua 25 de Março.

Logo no dia seguinte, o delegado Dr. Juvenal de Toledo Piza encarregou o comissário Ramiro Garcia das investigações. Nas imediações do local do crime foram encontrados os restos das roupas do menino e um boné de casimira xadrez que provavelmente também pertencia a ele.

Detiveram também um suspeito nos arredores do local do crime. Mas não conseguiram nenhuma informação sobre a identidade do menino.

Somente no dia 3 de janeiro apareceu um jovem aflito no Gabinete de Investigações na Rua dos Gusmões, procurando informações sobre seu irmão menor. O jovem, de dezessete anos era José Lemes de Vasconcelos que morava com a mãe e o irmão na Vila Maria. Tinham vindo a poucos meses de São José dos Campos, onde o pai estava em tratamento de saúde. Disse que seu irmão, Antonio, de 15 anos de idade, trabalhava na fábrica de tecidos de juta Sant’Anna e tinha saído de casa na manhã de sábado dia 1º às sete horas da manhã e não voltou. Usava paletó cáqui, calças de brim claro e estava descalço, com o pé doente. Usava boné.

Quando lhe mostraram o boné encontrado no local do crime, José Lemes o reconheceu como o do seu irmão. Mas quando o Dr. Juvenal Piza mostrou-lhe a fotografia do corpo encontrado, o jovem entrou a chorar descontroladamente e disse que não podia reconhecer e só sua mãe seria capaz de fazê-lo.

Devido ao estado emocional do rapaz, o delegado mandou que o levassem para casa e trouxessem sua mãe para reconhecer a vítima. Mas não foi encontrada, estava também tentando encontrar notícias do filho.

AlbertosFotos publicadas no jornal Correio Paulistano do dia 04-01-1927

No dia seguinte tudo seria esclarecido. O menino era mesmo Antonio Lemes, e o delegado Dr. Juvenal de Toledo Piza, já traçava um plano diferente para a investigação, pois os suspeitos que tinham arrolado se mostraram todos inocentes, pois tinham bons álibis. Mas nesse dia o acaso trouxe uma pista preciosa.

Às duas horas da tarde apareceu no Gabinete de Investigações uma pessoa pedindo para falar com o Dr. Juvenal Piza. Tratava-se de Roque de Cerqueira Leite3, um eletricista viúvo que trabalhava numa casa de eletricidade na Praça da República, esquina com a Rua Ipiranga, onde também morava.

O delegado, que não tinha absolutamente nenhuma pista recebeu-o. Disse que lendo as notícias sobre o crime da estrada de S. Miguel lembrou-se de um fato que na ocasião chamou-lhe a atenção. No dia de Ano Novo foi almoçar, entre 10 e 11 horas, no restaurante Meio-Dia da Rua Lourenço Gnecco4, como era seu costume. Estava já sentado na mesinha do botequim, quando viu entrarem no estabelecimento um “preto reforçado”, de seus 50 anos e dois garotos, um dos quais trajando paletó cáqui, boné xadrez e com as características descritas nos jornais. O tal “preto reforçado” estava ficando conhecido por ali nos últimos dias, tal a frequência com que aparecia.

Um dos garotos sentou-se em mesa separada e tomou apenas um café com leite. O outro garoto, o de paletó cáqui, sentou-se à mesa com o negro e almoçaram conversando baixinho. Notou que além de pagar a conta, o negro ainda deu uma moeda de dois mil réis ao menino. À saída ouviu bem quando o preto despediu-se do que ficara separado dizendo que os esperassem, pois iriam à Penha e não demoravam.

Após ter lido sobre os acontecimentos nos jornais, Roque achou melhor relatar os fatos que talvez pudessem auxiliar nas investigações.

Foi tiro e queda. Os policiais acompanhados de Roque foram naquela mesma tarde à Rua 25 de Março e às 4 horas da tarde encontraram José Augusto do Amaral, que não ofereceu nenhuma resistência.

Recolhido à delegacia, foi interrogado pelo próprio delegado. Disse seu nome, idade, que havia nascido em Conquista, Minas Gerais, não sabia ler. Quando foi mencionado o crime, para espanto geral e com uma calma surpreendente confirmou que era ele próprio o autor do bárbaro crime e ia relatar não só este, mas outros que cometeu durante o mês de dezembro passado. E foi contando…

No dia primeiro do ano andava pelos arredores do Parque D. Pedro II, perto do mercado de verduras, quando um grupo de meninos que estavam jogando alguns niqueis chamou sua atenção. Ao lado deste havia outro grupinho jogando cartas e Amaral entrou no jogo ganhando algo em torno de dez ou onze mil réis. Foi aí que viu o garoto de boné e interessou-se por ele. Aproximou-se, fez camaradagem e logo estavam almoçando.

Depois foram para o Largo do Mercado onde tomaram o bonde “cara-dura”5 para a Penha. O garoto tinha parentes na Penha e às vezes ia até lá, como tinham feito camaradagem o menino o acompanhou no passeio. Desceram no ponto final e foram caminhando pela estrada de S. Miguel, parando às vezes em algum botequim onde tomou uns tragos de cachaça.

bonde para operários celso garcia 1916O bonde “cara-dura” da linha Penha

Caminharam por uns dois quilômetros até chegar ao local onde existe um atalho sem saída recém-construído.  Foi aí que sem que o menor percebesse imobilizou-o com o braço esquerdo e esganou-o com a mão direita. O menino logo desmaiou e estava morto ao chegar ao chão. Em seguida arrancou-lhe as calças, rasgou a camisa e o estuprou.

O próprio delegado custava a acreditar na veracidade do relato, considerando a naturalidade e a espontaneidade de Amaral, mas os fatos coincidiam com as narrativas de Roque Leite e mesmo do proprietário do restaurante Meio-Dia que também havia sido ouvido.

Mesmo assim, foi o delegado pessoalmente acompanhado do acusado ao local do crime para que ele identificasse o local exato e as circunstâncias. Amaral mostrou o local onde o crime havia sido praticado e para onde o cadáver havia sido removido.

Na volta à delegacia Amaral, com muita calma e serenidade continuou sua história.

Amaral havia sido preso várias vezes, por infrações menores, sendo a última em 1926 como desertor do Exército e indultado no dia 19 de novembro daquele ano.

Quinze dias depois de sair da cadeia cometeu o primeiro crime da série.

Estava sentado em um banco na Av. Tiradentes quando um rapaz, que lhe aparentou uns 16 anos, lhe pediu um cigarro. Aí começaram a conversar e como o rapaz lhe disse que estava com  fome e não tinha recursos, levou-o ao restaurante do Cunha, na esquina da Av. Tiradentes com a João Teodoro e pagou sua refeição. Convidou-o então para ver o futebol de várzea no Campo de Marte.  Já chegando, atrás de um bambuzal, agarrou o rapaz, que tentou resistir, mas não conseguiu. Esganou-o e praticou o estupro.

Alguns dias depois, foi a vez de um menino de seus 12 anos, filho de uma viúva que morava no Pari. Convidou-o a ir à sua casa buscar umas gaiolas e acabou o atacando no mesmo Campo de Marte, onde deixou o corpo.

Houve ainda um terceiro crime, mas desta vez, algo saiu errado. Estava na Av. Celso Garcia, às oito da noite, em frente ao Cine Brás Polytheama quando viu um engraxate, um menino de dez anos. Perguntou se ele queria fazer um pequeno carreto e receberia de pagamento quatro mil réis. O menino achou que valia a pena e foi com ele. Chegando à ponte do Tamanduateí, próximo à estação do Tramway da Cantareira, o atacou e começou a esganá-lo até que o menino desmaiou. Amaral, porém assustou-se com algum ruído, abandonou o corpo e fugiu. Mas não conseguia sossegar, lembrando-se do menino. Quando amanheceu o dia voltou, mas o corpo havia desaparecido.

1918mA antiga estação do Tramway da Cantareira e a ponte do Tamanduateí

Eram casos desconhecidos para a polícia e havia a necessidade de sindicâncias. Lá foram as autoridades ao campo de Marte, montando cavalos da Força Publica. Os cavalos eram necessários porque o rio Tietê serpenteava por ali e na época das chuvas de verão o local se transformava num pântano. Amaral ia guiando os investigadores até que passando um bambuzal encontraram uma ossada humana já quase completamente descarnada.

– É isso mesmo! É de um dos meninos… O outro deve estar mais adiante – falou Amaral com naturalidade.

– Aqui está! – exclamou.

No meio de uma folhagem enlameada jazia o corpo de um menino, com as pernas quase intactas e o corpo meio descarnado, provavelmente pela ação de cães famintos. Ali perto as calças enlameadas.

– Esse é o das gaiolas… Disse Amaral.

Ao final a história, que parecia meio fantasiosa, se confirmava verdadeira. As identidades foram sendo apuradas e ao final ficou tudo esclarecido.

O rapaz da Av. Tiradentes, não era um menino, chamava-se Antonio Sanchez, tinha 20 anos, era de compleição franzina, imberbe e um tanto efeminado, parecia realmente ter não mais que 17 anos e estava desaparecido desde o dia 6 de dezembro da casa onde morava.

Já o menino enganado pela promessa das gaiolas era José Felipe de Carvalho, de 10 anos.

Quanto àquele da ponte do Tamanduateí, a história foi diferente. Estando o delegado Juvenal Piza na estação da Luz dia cinco de janeiro às cinco horas da manhã, por motivos pessoais, foi abordado pelo carregador 259, Carmine Pezzino, que queria aproveitar a oportunidade para relatar um fato ocorrido com seu filho que deveria ter relação com o caso do “preto Amaral”.

Indo ao Gabinete de Investigações à tarde, com o menino, Rocco Pezzino, contou exatamente a história que Amaral já havia contado, porém ainda não havia sido publicada. Acrescentou que ao chegar à ponte, Amaral agarrou-o com um gesto brusco e apertou sua garganta. Desfaleceu e só foi despertar altas horas da noite, com sangue no rosto, sujo de terra e com a roupa rasgada. Um motorista e um policial o socorreram e o levaram para casa.

Ao avistar Amaral o menino o reconheceu e Amaral confirmou toda a história.

No curso das investigações Amaral foi submetido a exames psiquiátricos e antropométricos tendo em vista as teorias “científicas” da Escola Positiva da época que, baseadas em César Lombroso e outros que afirmavam ser possível reconhecer “personalidades criminosas” através da análise de seus traços físicos.

No caso de preto Amaral, o tamanho “descomunal” e “desmedido” de seu pênis foi utilizado para identificar o estigma de sua degenerescência, sua anormalidade e sexualidade invertida. Questionado se costumava ter relações sexuais com “mulheres da vida”, respondeu que sim, porém nenhuma o aceitava novamente.

No dia 5 de janeiro houve oportunidade para que os repórteres entrevistassem Amaral, quando ele demonstrou sua personalidade atormentada dizendo:

– Sei que vou ser condenado a trinta anos de prisão e acho isso pouco para punir os meus crimes. Preferia que aqui houvesse a pena de morte. Queria eu próprio comandar os soldados para o meu fuzilamento, é isso que eu mereço.

José Augusto do Amaral foi denunciado em 12 de fevereiro de 1927, mas não chegou a ser julgado. Morreu de tuberculose na enfermaria da Cadeia Pública no dia 2 de junho do mesmo ano. Não foi o pelotão de fuzilamento que ele queria, mas agora teria a oportunidade de apresentar-se a um Tribunal Superior e conseguir o alívio desejado. Passaria à história como o primeiro “serial killer” brasileiro.

CP 03-06-1927 recorteJornal Correio Paulistano de 03-06-1927

Observação: Em 20 de setembro de 2012 houve, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, um espetáculo teatral representando um Júri simulado do caso Preto Amaral no qual participaram um procurador da Justiça, um defensor público e dois criminalistas de primeira grandeza. Aventou-se a hipótese de que Preto Amaral tenha sido torturado para confessar seus crimes. É possível que tenham existidos maus-tratos, pois estes já eram recorrentes nas delegacias naquela época, porém pela leitura dos jornais e das entrevistas feitas com o próprio criminoso é difícil crer-se nesta hipótese, pois desnecessária, visto tratar-se de uma pessoa atormentada e procurando alívio, como ele próprio afirmou aos repórteres durante a entrevista descrita acima.
No Júri simulado preto Amaral foi absolvido pela plateia presente por 257 votos a favor e 57 contra.

Notas:
1 – O antigo Mercado Municipal ficava na Rua 25 de Março, onde está hoje a Praça Fernando Costa.
2 – A estrada velha de S. Miguel é o antigo caminho para o Rio de Janeiro. O trecho citado atualmente é a Av. Amador Bueno da Veiga, junto ao bairro Vila Esperança.
3 – Em alguns jornais foi grafado com Roque Siqueira Leite.
4 – A Rua Lourenço Gnecco ficava do lado direito do antigo mercado, de quem está de frente para o rio Tamanduateí, hoje seria o lado direito da Praça Fernando Costa.
5 – Os bondes “cara-dura” eram bondes destinados a operários, pois tinham tarifa mais baixa e levava um reboque. Conforme o contrato com a Prefeitura apenas operários descalços ou carregando suas ferramentas poderiam usá-los. Porém acabavam sendo utilizados por todos os que estavam com poucos recursos, daí o apelido.

Fontes:
Jornal Correio Paulistano, edições de 02/01/1927 a 08/01/1927.
Jornal O Estado de S. Paulo, edições de 02/01/1927 a 08/01/1927.
SOUZA CAMPOS, Paulo Fernando de, OS CRIMES DO “MONSTRO NEGRO”: REPRESENTAÇÕES DA DEGENERESCÊNCIA EM SÃO PAULO, trabalho apresentado no XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003.

Categorias:Sem categoria

O Bispo e as Crianças

Rua do Carmo 1910

Rua do Carmo em 1910

Por Edison Loureiro

A foto, de 1910, mostra um trecho da Rua do Carmo que não mais existe. É no começo da Av. Rangel Pestana, que ficava à direita na foto. A Av. Rangel Pestana era bem mais estreita, íngreme e chamava-se Ladeira do Carmo. Lá embaixo da Ladeira do Carmo, antes da ponte que levava ao Brás o lado esquerdo estava sempre esburacado pela erosão das águas servidas que por ali escorriam, além do lixo que deixavam por lá e por isso era chamado Buracão do Carmo.

A torre na esquina à direita, era do Recolhimento de Santa Tereza, na casa do meio funcionou a Escola Modelo do Carmo, depois Grupo Escolar do Carmo, dirigida por Caetano de Campos com a assistência de Miss Browne.

Na primeira casa à esquerda da foto morou o bispo Mateus de Abreu Pereira (1742-1824), quinto bispo de São Paulo. Foi ele que recebeu D. Pedro I neste mesmo local, em 25 de agosto de 1822 e o resto da história vocês já sabem.

Dizem vários cronistas que o bispo foi conhecido por ser pessoa caridosa e quando morou naquela casa não era raro ouvir choro de recém-nascidos que vinham do Buracão do Carmo. As crianças enjeitadas eram abandonadas naquele local, onde era comum o despejo de lixo.

O bispo, com medo que a criança fosse devorada por porcos que por ali reviravam a sujeira, mandava algum criado recolher o pobre pequenino a toda pressa e da janela mesmo o batizava e mandava abrigar.

O primeiro presidente da Província de São Paulo, que tomou posse em abril de 1824, apenas dois meses antes da morte do bispo D. Mateus e foi provedor da Santa Casa de Misericórdia, instituiu logo em 1825 a Roda dos Enjeitados no hospital da Santa Casa, então na Rua da Glória no local conhecido antigamente por Chácara dos Ingleses, para acabar com tão feio costume. A Santa Casa mudou-se e a Roda mudou junto e funcionou até junho de 1949 na Rua D. Veridiana. Quem quiser pode visitá-la no Museu da Santa Casa.

Por outro lado, apesar da existência da Roda, o costume de abandonar crianças na rua persistiu por longo tempo, conforme podemos ver por notícia publicada no jornal Correio Paulistano de 9-01-1874, reproduzida abaixo.

CP 9-1-1874 Batuíra

O conhecido entregador de jornaes mencionado é Antônio Gonçalves Batuíra, que se tornaria conhecido no futuro não por entregar jornais, mas por seus atos de beneficência e obras pioneiras no Espiritismo. Mas esta história eu já contei aqui

 

Categorias:Sem categoria

A S.P.R. e seu Início Desastroso

1865pbA Estação da Luz em 1865

Por Edison Loureiro

Seguro morreu de velho
Quem avisa amigo é
Quem quiser dar bons passeios
Tem carrinhos – sem receios
Bem baratos lá na Sé

O que tem os versinhos acima a ver com a SPR – São Paulo Railway, a “Inglesa”? Para entender temos que conhecer a história da festa da chegada da primeira locomotiva à Estação da Luz,

Apenas alguns anos depois que foram inauguradas as primeiras ferrovias na Inglaterra, em 1825 e 1829, houve uma primeira tentativa de construção de uma ferrovia em São Paulo que permitisse escoar a produção de bens que eram produzidos no interior para o porto de Santos.

Assim, já em 30 de março de 1835 foi votada uma lei provincial autorizando o Presidente da Província a “conceder carta de privilégio exclusivo para a companhia de Aguiar, Viúva, Filhos & Comp., Platt e Reid para a factura de uma estrada de ferro para o transporte de gêneros e passageiros desde a Villa de Santos até São Carlos [atual Campinas], Constituição, Ytu, ou Porto Feliz”, mas esta iniciativa não foi para frente.

Somente vinte anos depois, uma lei geral e outra provincial deram condições para que em 26 de abril de 1856 um decreto desse concessão por 90 anos a Irineu Evangelista de Souza, então Barão de Mauá, José Antonio Pimenta Bueno, futuro Marquês de São Vicente, e José da Costa Carvalho, Marquês de Monte Alegre para a construção e exploração de uma ferrovia que ligasse Santos a Jundiaí. Assim, em 1860, foi reunido o capital que formou a São Paulo Railway Company com aporte de capitais ingleses.

As obras começaram em 24 de novembro de 1860 e em 1864 já estava funcionando o primeiro plano inclinado da Serra.

Em 1865, todos os 800 metros da Serra do Mar já haviam sido vencidos e os trilhos chegavam à então modesta Estação da Luz.

A Câmara Municipal resolveu então fazer uma grande comemoração. Ao meio-dia de seis de setembro daquele ano foi marcada a chegada do primeiro trem à Estação. Haveria uma cerimônia de batismo do trem, após a banda de música, e os discursos de praxe, seria oferecido um “copo d’água” aos empreiteiros da estrada, no Jardim Público. Bem, o tal “copo d’água” era um eufemismo para um opíparo banquete no Jardim da Luz.

Ao saber dos planos da Câmara, um dos funcionários da empresa, Sr. Henderson disse que não era conveniente, pois apesar dos trilhos já estarem assentados até a Estação da Luz, ainda havia trabalho a fazer no assentamento e o trem deveria trazer grande quantidade de material.

Mas o roteiro da solenidade foi seguido e o trem foi recebido na Mooca com uma banda de música. Vários figurões graúdos, inclusive o Presidente da Província, o Conselheiro Carrão embarcaram para serem recebidos em triunfo na Estação da Luz. Eram duas locomotivas puxando três vagões. O Conselheiro Carrão acomodou-se na primeira locomotiva junto com mais algumas pessoas e todos os outros nos vagões.

A viagem transcorreu tranquila até o Brás e passando a estação do Brás havia uma ligeira curva à direita e entrava-se no aterrado que seguia em reta pelo aterrado da várzea do Tamanduateí até a estação.

Após passar o Brás, o maquinista acelerou a composição e, quando chegava à ponte do Tamanduateí, já próximo ao Jardim da Luz, ouviu-se um forte estalo e a corrente que unia as duas locomotivas partiu-se. A primeira seguiu em frente, mas a segunda despencou pela borda do aterro levando o resto do comboio e uma parte dos trilhos. Calculou-se a velocidade do comboio em 45 km/h.

O maquinista Peregrino Lodi, teve morte instantânea e os passageiros todos ficaram feridos, alguns em estado grave, mas todos acabaram se recuperando.

Quem pagou o pato foi o engenheiro fiscal do governo, Ernesto Street, que perdeu o emprego.

Os versos que abrem esta história são de autoria de Pedro Taques de Almeida Alvim (1824-1878), que além de poeta, foi redator e um dos proprietários do jornal Diário de São Paulo além de deputado provincial em várias legislaturas e seguramente foi um dos passageiros da viagem fatídica. O melhor a fazer então é encerrar a história passando a palavra ao Segismundo José das Flores, pseudônimo que usava Pedro Taques em suas crônicas divertidas em forma de cartas de um caipira para o compadre. Ele que ele conte como foi o acidente.

“Vinham duas charolas adiante com a cozinha do bicho, cuja chaminé botava fumaça que era uma temeridade. Treparam todos e por minha desgraça eu também, que fiquei em um dos caixões da tal chocolateira. Não sei porque, compadre, quando empanelei-me no tal patíbulo, tive ímpetos de pedir demissão.

Já ia formando  um pulo para safar-me quando roncou a monstruosidade, que só me deu tempo para agarrar-me a um pobre companheiro, ainda mais desgraçado que eu.  O bicho deu um arranco e assobiou que se podia ouvir aí bem perto do sítio do compadre Antonio Joaquim. Varou por aí como um rojão soltado atravessado e, enquanto o diabo esfrega um olho, já tínhamos enxergado a cabecinha da torre do Brás.

Até o dito Brás o bicho desunhou que só enxergamos o verde do terreno que ia passando de carreira por nós. Daí em diante é que a porca torceu o rabo. O maquinista, foguista, cozinheiro ou o diabo que o valha que dá corda de fogo ao tal vagão parece que engrilou e meteu as chinelas no bicho. Aqui é que foram elas. Não enxergamos mais nada, era tudo cor de ar; os passageiros davam cabeçadas, as cadeiras iam ao chão. Eu gritava ao homem do fogareiro que parasse com um milhão de diabos, pois receava que aquilo estourasse com governo, câmara e Segismundo. Qual! O ladrão do rei do fogo redobrava a doze e o bicho ia corcoveando.

Ninguém dizia palavra porque contra o progresso de fogo ninguém pia, muito menos eu, apesar de estar desesperado por pilhar em terra o tal inglês da cozinha. Continuou o desalmado a esporear o potro de ferro que botava fogo pelo nariz e fumaça pelos olhos.

E agora compadre, veja o que me aconteceu nessa idade! Tanto fez o bruto da chaminé com o seu canudo que o potro corcoveou de verdade, tropicou no estribilho e prancheou conosco!

Não sei o que aconteceu, pois desfaleci. Quando dei por mim estava eu dentro de um valo com meus colegas de caixão e com os respectivos caixões em terra, os varões arrebentados, uns a saírem do valo e outros a saltarem da ratoeira. Entre mortos e feridos alguns escaparam. Eu agarrei-me a uma cerca e fiquei nela escarranchado e habilitado a meter-me em curativos de cirurgiões.

Cada um tratou de si, cuidando de safar-se e dar o basta, apesar de já estarmos perto do Jardim, como indicava o cheiro do almoço municipal.”

Fontes

Jornal Diário de São Paulo de 10-09-1865 e 12-09-1865
Jornal Correio Paulistano de 06-09-1865 e 07-09-1865
Pinto,  Adolpho Augusto  – História da Viação Pública de São Paulo, 1903.

Categorias:Sem categoria

O Roubo dos Quintos Reais

Remedios 1887p
A igreja dos Remédios na Praça João Mendes em 1887.

Por Edison Loureiro

Segundo a maioria dos historiadores a igreja dos Remédios que existia na Praça João Mendes originou-se da capela de São Vicente Ferreira que foi erguida por um personagem curioso na história do Brasil, protagonista de um episódio um tanto esquecido, o roubo dos quintos reais

Estamos falando de Sebastião Fernandes do Rego, aventureiro português que aportou ao Brasil com um único objetivo, ficar rico, seja lá como fosse. Rico sem dúvida ficou, porém à custa de uma vida plena de crimes, manipulações e trapaças.

Seu primeiro grande golpe foi sobre os irmãos Leme, outros aventureiros que também não tinham nada de santos. Sebastião Fernandes do Rego simplesmente ganhou a confiança dos irmãos, apropriou-se de todo o ouro que haviam garimpado e ainda com suas tramoias provocou a condenação à morte de suas vítimas e o sequestro de seus bens. Não havia muito a sequestrar, uma vez que Sebastião havia furtado todo o ouro. Quando o golpe foi descoberto, mais uma vez, Sebastião se safa com suas tramoias e consegue sair ileso sem devolver um tostão.

Graças à sua lábia tornou-se confidente do então capitão-general da capitania, Rodrigo César de Menezes, e chegou a ocupar o cargo de Provedor-Mor, responsável, entre outras coisas pela arrecadação dos quintos sobre o ouro e emissão do correspondente recibo pelo ouro já quintado, ou seja, com o imposto pago.

Era a raposa tomando conta do galinheiro. Ouviam-se histórias de arrepiar. Garimpeiros que pagavam os quintos e ficavam sem recibo tendo de pagar duas vezes, outros que eram forçados a vender o ouro por preços aviltados, e por aí vai. Essa lambança toda fazia o Provedor-Mor da Fazenda Real lá em Ytu.

A esta altura o amigo leitor deve estar se perguntando de onde vinha tanto ouro. Portanto vamos esclarecer que na época em questão a Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, que era seu nome completo, abrangia um território que compreende aproximadamente aos atuais estados de São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e Rondônia.

Para coibir a roubalheira, a coroa portuguesa resolve reativar a Casa de Fundição de São Paulo dentro do Palácio do Governo e determina que os quintos sejam cobrados somente no Palácio. Determina ainda mais, que as barras de ouro já quintadas sejam marcadas com o selo real na presença do Provedor, do Escrivão e do Tesoureiro, ficando proibida a circulação de ouro em pó.

Lá vem o trambiqueiro para São Paulo e aproveita-se da ausência do capitão-general que andava pelos lados de Cuiabá para lambuzar-se em mais gatunices.

Desta feita os garimpeiros não reclamaram por entregar o ouro para ser marcado pelo Provedor-Mor, ao contrário, preferiam entregá-lo, às ocultas, na casa de Sebastião do Rego a fazê-lo na Casa de Fundição. Sebastião quintava o ouro por sua própria conta e ainda entregava as barras marcadas com o sinete real pela metade do preço que cobrava a Casa da Fundição.

Chegou-se a aventar que Sebastião tinha, de alguma forma, conseguido cunhos falsos com o sinete. Porém a verdade é que Sebastião tinha chaves falsas do cofre da Casa da Fundição e furtava os cunhos originais sempre que precisava cobrar seus quintos particulares e marcar as barras.

Em 1727 chegava a São Paulo um novo governador, Antônio da Silva Caldeira Pimentel. O Trambiqueiro-Mor deve ter passado alguns dias na expectativa, matutando como enganar mais um. Porém suas preocupações logo passaram, pois o novo governante logo revelou-se farinha do mesmo saco. Também tinha vindo ao Brasil com o único objetivo de enricar a qualquer custo.

Foi assim que tramaram uma gatunice que ficou famosa. Logo na primeira remessa dos quintos reais, substituíram a carga de ouro por chumbo. É possível imaginar a vergonha do rei D. João V lá em Lisboa, quando manda abrir os caixões, na presença de seus ilustres convidados e dá de cara com todo aquele chumbo cinzento em vez das esperadas barras douradas.

Demorou um pouco, mas Sebastião do Rego acabou preso e levado à prisão do Limoeiro em Lisboa. Mas gastou uma pequena parte da fortuna que já tinha acumulado distribuindo favores e propinas e logo retorna livre e feliz ao Brasil. Foi na época de sua prisão que mandou construir a capela que futuramente seria a Igreja dos Remédios. Dizem que foi promessa.

O gatuno teve a prisão decretada novamente, mas não chegou a ir para a cadeia porque acabou morrendo de causas naturais antes.

A história deste personagem foi narrada de forma romanceada por Paulo Setúbal na obra Os Irmãos Leme.

A história do gatuno Sebastião do Rego é verdadeira e bem documentada. Já o pesquisador Nuto Sant’Anna, em artigo publicado na revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de 1937, refuta a tese de que a capela tenha dado origem à igreja dos Remédios. Mas este assunto vamos deixar para os historiadores resolverem.

Categorias:Sem categoria

Uma Lembrança da Vila Madalena

Fradique CoutinhoRua Fradique Coutinho provavelmente na década de 1960

Por Edison Loureiro

A Vila Madalena de hoje concentra estúdios de artes, fotografia, galerias, exposições, escolas de teatro e principalmente bares, muitos bares. É um ponto de concentração de artistas, escritores, jornalistas e gente jovem à procura de diversão. Nada que lembre a de 1954, quando a parte alta da Fradique Coutinho nem era pavimentada, como todas as ruas em redor, mas já existia a Escola de Balé Elza Prado que está no mesmo lugar até hoje.

Naquele ano de 1954 foi inaugurada a linha do bonde 28 que saía da Rua Xavier de Toledo bem do lado da Light e subia a Fradique até a Rua Wisard, contornava pela Fidalga e Purpurina e voltava pela Fradique, subindo pela Teodoro Sampaio em direção à Dr. Arnaldo de volta ao ponto inicial. Até então quem vinha para estas bandas usava o bonde 29 Pinheiros e descia na esquina da Teodoro Sampaio e enfrentava o ladeirão a pé.

Pois foi numa bela manhã ensolarada dum domingo de 1954 que de repente ouviu-se um estrondo como um tiro de canhão vindo do alto da Rua Fradique Coutinho. Mas o povo do bairro não se assustou, era só o morador do número 1239 da Fradique Coutinho, conhecido fogueteiro do bairro e fabricante de uns papagaios enormes formato barrilete com rabiola de pano os quais ia empinar com o filho ainda pequeno e a molecada do bairro. Seu nome era Natur, que além das bombas e papagaios tinha paixão pelo radioamadorismo.

Era um jovem de 30 anos, porte atlético e estatura mediana para a época, 1m65, cabelos pretos com umas entradas, apesar da pouca idade, que prenunciavam a futura calvície. Era elegante, com pinta de galã e um bigodinho à moda de Clark Gable.

Essas brincadeiras de domingo eram feitas num campo usado também para futebol que ficava no final da Rua Purpurina, apenas a uma quadra da Fradique Coutinho. Ma estava se aproximando a hora do almoço, portanto chamou o garoto e foram os dois para casa no Ford Anglia verde 1949, recém-adquirido. Descendo a Fradique Coutinho resolveu dar uma paradinha na padaria na esquina da Wisard, onde havia uma parada de bondes, para se abastecer de cigarros e tomar um rápido aperitivo, afinal era domingo…

Do outro lado da Wisard existia um bar, um tanto mal frequentado, com portas de vaivém, estilo bar de filme de faroeste. Como estava próximo da hora do almoço e era uma parada rápida, resolveu deixar o garoto, que tinha cinco anos no carro, para evitar a tentação dos doces.

Era tudo o que o garoto queria. Logo se aboletou no banco do motorista para brincar que estava dirigindo, imitando tudo o que via o pai fazer, inclusive destravar o freio de mão… E não deu outra, o carro foi descendo pela Fradique e, como estava com a direção ligeiramente para a direita, cruzou a Wisard e foi direto para o bar da outra esquina, de onde alguém gritou:

– O carro do Natur está andando sozinho! E só se viam os frequentadores correndo para fora.

O garoto era pequeno e nem se via sua cabeça pelo para-brisa. O fordinho só parou quando bateu na porta de vaivém do boteco.

Muito susto e correria, mas além da porta do bar arrebentada, faróis partidos e lataria amassada, o garoto não sofreu dano algum. Tanto que cresceu, teve filhos, já é vovô e criou o hábito de contar historinhas antigas.

Categorias:Sem categoria

A praça sumiu!

1862 a 1863Rua da Glória em 1862/63 em foto de Militão Augusto de Azevedo

Por Edison Loureiro

A imagem acima, da Rua da Glória descendo do Largo Sete de Setembro em nada lembra o aspecto atual deste lugar, com todas aquelas decorações em estilo oriental. Na época da foto acima a rua já tinha recebido sua primeira pavimentação de macadame, que foi feita em 1855. Antes disso, conta-nos um cronista que era de terra vermelha e “cheio de boqueirões”.

Ainda na época desta foto era o caminho obrigatório para quem quisesse ir ao litoral, pois a estrada de ferro só começou a funcionar em 1866. Descia-se a Rua da Glória, que faz uma curva à esquerda e seguia-se mais ou menos pelo trajeto que hoje é formado pelas ruas Lavapés e Independência atingindo a região do Monumento do Ipiranga. Daí pelo caminho onde hoje é a Rua Bom Bom Pastor até a região conhecida por Moinhos. Eventualmente alguns amigos acompanhavam o viajante até a Árvore das Lágrimas, na atual Estrada das Lágrimas. A Rua da Glória era conhecida como Estrada ou Caminho do Mar. Havia um caminho mais antigo ainda que saía da Rua Tabatinguera, à altura da Rua do Carmo, mas pela Rua da Glória acabou ficando mais curto e do antigo caminho não sobrou nenhum vestígio.

O viajante ia passando pelas chácaras que havia por ali. Logo ao passar a Rua Conde do Pinhal que era chamada de Beco Sujo, à esquerda, detrás da fileira de casinhas baixas havia a chácara de D. Anna Machado, que se estendia até a beira do Tamanduateí que ainda serpenteava onde hoje é a Rua Glicério. Logo após, onde hoje está a Rua dos Estudantes, do lado direito estava o Cemitério Público ou Cemitério dos Aflitos e depois cemitério da Glória, o primeiro cemitério de São Paulo. Ali eram enterrados os condenados, os indigentes, os soldados e também os escravos. Pessoal de melhor posição na sociedade era enterrado nas igrejas ou terrenos adjacentes e quanto maior fosse a doação para a igreja, mais perto do altar de sua devoção. Mas não era um cemitério com lápides ou inscrições, eram simples covas com cruzes de madeira, sem datas ou lembranças do defunto. Foi criado em 1779 e ocupava toda a quadra que existia entre a Rua dos Estudantes até a Rua Américo de Campos, durou até 1858 quando o terreno foi loteado.  No meio da quadra da Rua dos Estudantes um caminho levava a uma capela dentro do cemitério. Hoje este caminho é o beco que recebeu o nome de Rua dos Aflitos e a antiga capela é a pequenina Igreja dos Aflitos que existe até hoje.

Ainda do lado direito, logo além do cemitério avistava-se um morro. No alto a figura sinistra da forca permaneceu de 1775 até 1850, quando então foi desativada. Obviamente era chamado de Morro da Forca. Hoje está ali a Capela da Santa Cruz das Almas dos Enforcados. Ou simplesmente Igreja das Almas, como ficou mais conhecida. Começou como uma cruz ao pé do morro e, em 1891, construiu-se uma simples capelinha que, apesar dos incêndios que sofreu, foi sendo ampliada até 1917 quando tomou o formato que hoje conhecemos. O morro foi aplainado e deu origem à Praça da Liberdade. A terra retirada foi usada para o aterro do Glicério empurrando o rio Tamanduateí mais para frente.

morro da forcaO Morro da Forca visto da Av. Liberdade em desenho de Pedro Alexandrino

Do lado esquerdo da Rua da Glória, no ponto onde está o viaduto Mie Ken, por cima da Via Leste-Oeste, abria-se uma pequena trilha que levava a outra elevação. Esta ficava nos terrenos da Chácara de Francisco Machado fronteiriça à Chácara de D. Anna Machado.

No alto desta colina estava o casarão sede da chácara, local que tem uma história muito interessante. Passou a ser conhecida como Chácara dos Ingleses quando nela morou o coronel John Rademaker, ocasião em que a atual Rua São Paulo, continuação da Américo de Campos, recebeu o nome de Rua dos Ingleses.

Após a morte de Rademaker, em 1820 o casarão foi vendido para o coronel João de Castro Canto e Melo que aí vivia com sua família, inclusive sua filha Domitila que seria em futuro próximo a Marquesa de Santos, célebre amante de D. Pedro I e depois esposa de Rafael Tobias de Aguiar e figura ilustre e benemérita na cidade de São Paulo nas últimas quadras de sua vida. Certamente durante sua visita a São Paulo em 1822, quando proclamou a Independência, D. Pedro deve tê-la visitado naquele casarão onde, segundo Affonso A. de Freitas, “cupido travesso fez diabruras”.

Em julho de 1825 o casarão passou a ser ocupado por uma instituição que já naqueles tempos era mais que centenária, a Santa Casa de Misericórdia, que ali instalou seu hospital e o Asilo dos Expostos para abrigar as crianças enjeitadas pelos pais e abandonadas na Roda dos Enjeitados que primeiramente foi instalada lá. Até 1840 ficou o casarão com esta nobre ocupação, quando a Santa Casa resolveu construir um edifício mais apropriado na esquina da atual Rua da Glória com a Rua dos Estudantes, na banda do lado do Tamanduateí. Naqueles tempos a Rua da Glória ficou conhecida como Rua da Santa Casa, somente em 1851 recebeu o nome atual.

De circunspecto hospital de caridade o casarão vem conhecer dias mais turbulentos. Transforma-se numa república de estudantes, abrigando a nata da juventude intelectual e romântica da cidade naquele meio do século XIX, liderados por Bernardo Guimarães, autor de A Escrava Isaura e Álvares de Azevedo da Lira dos Vinte Anos. A antiga casa colonial passa então a ser palco de celebrações, pândegas e mesmo orgias. Vários textos daqueles jovens autores foram concebidos ali mesmo.

Alguns estudantes haviam formado em 1845 (segundo Spencer Vampré) uma associação de caráter secreto a que deram o nome de Sociedade Epicureia com o objetivo um tanto extravagante de “realizar os sonhos de Byron”. Lorde George Gordon Byron (1788-1824) foi um poeta excêntrico que cultivava a beleza do horror, do repulsivo, do monstruoso e do satânico.

Consta que certa vez passaram quinze dias fechados na casa, com todas as janelas vedadas, à luz de candeeiros, fazendo todo tipo de loucuras na companhia de algumas prostitutas.  Contam que havia gatos pretos e morcegos soltos pelo casarão e esqueletos roubados do cemitério vizinho. Só saíram quando a bebida e o tabaco tinham terminado.  Talvez estas “celebrações” tenham inspirado ao jovem Álvares de Azevedo a obra uma Noite na Taverna.

Na peça intitulada Macário, Álvares de Azevedo colocou Satã morando no casarão da Chácara dos Ingleses quando descreve a chegada do jovem Macário a São Paulo subindo a Rua da Glória:

Macário: Oh! Ali vejo luzes ao longe. Uma montanha oculta no horizonte. Disséreis um pântano escuro cheio de fogos errantes. Porque paras o teu animal?

Satã: Tenho uma casa aqui na entrada da cidade. Entrando à direita, defronte do cemitério. Sturn, meu pajem, lá está preparando a ceia. Levanta-te sobre meus ombros: não vês naquele palácio uma luz correr uma por uma as janelas? Sentiram a minha chegada.”

Com a saída dos estudantes e depois de servir a alguns colégios, o antigo casarão ainda teve um último morador famoso: o Conselheiro Furtado de Mendonça, lente da Academia e delegado de polícia crônico de São Paulo. Conta Affonso de Freitas que o Conselheiro Furtado por tanto tempo exerceu a função que seu nome já era sinônimo de delegado.

Não deixa de ser uma ironia, pois Furtado de Mendonça foi nomeado delegado exatamente por ser lente da Faculdade e ter bom relacionamento com os estudantes e assim por freio em suas “estudantadas”, que tanto atormentavam a cidade.

Pedro Alexandrino

O casarão da Chácara dos Ingleses em aquarela de Pedro Alexandrino

O Conselheiro Furtado morreu em 1890 e logo em seguida também o casarão. Na segunda metade da década foi construído ali um mercado que logo foi transformado em depósito de carne verde, conhecido como o Tendal do Largo São Paulo, que foi o nome dado ao largo que se formou.

A carne dos animais abatidos no Matadouro da Vila Mariana, onde hoje fica a Cinemateca, era transportada à estação de bondes São Joaquim, onde hoje está a Estação do Metrô, pelos bondes a vapor da Viação Santo Amaro e chegava ao Tendal por bondes cargueiros puxados a burro da Companhia Viação Paulista. Era então distribuída entre vários açougueiros que as levavam em carroções. Até 1903 o largo ainda não era calçado com paralelepípedos e quando chovia o local ficava um lamaçal que acabava sendo levado para dentro do Tendal.

A disputa por melhores preços e a formação de cartel por parte dos marchantes era motivo constante de discussões e até brigas sérias com direito a cacetadas e facadas, houve até casos de mortes no local.

1904

O Tendal do Largo São Paulo em 1904

Mas em março de 1911 uma lei municipal autorizou o prefeito Raymundo Duprat a arrendar o Tendal do Largo São Paulo por 25 anos para a construção de um teatro no local, nos mesmos moldes do que havia sido feito em 1908 com o Teatro Colombo construído no lugar do Mercado do Largo da Concórdia. Findo o período de concessão, as benfeitorias seriam propriedade da municipalidade sem direito a indenização. O depósito de carnes seria transferido para junto do Matadouro da Vila Mariana.

O depósito mudou-se em 1912 e o antigo tendal foi precariamente adaptado para funcionar como cinema e também apresentando alguns números de palco.

1912

O Tendal adaptado para teatro em 1912

Só em 28 de janeiro de 1914 seria inaugurado o Teatro São Paulo com um espetáculo privativo para a imprensa, no dia seguinte seria aberto ao público. Com frente para a Rua da Glória, o prédio apresentava uma fachada estilo que lembra o mourisco com duas cúpulas. Na plateia existiam 1036 cadeiras mais 20 frisas, 36 camarotes e galeria para acomodar 800 espectadores. Tinha ainda um corredor externo com o bar, bilheteria e demais dependências. Na parte externa um terraço com cadeira e mesas. Talvez fosse mais apropriado chamá-lo de Cine-Teatro, pois a maior parte do tempo funcionou como cinema. Na inauguração foi apresentado o filme “Entre homens e feras” e no intervalo uma orquestra com 10 professores distraia os espectadores.

1919pb

O Teatro São Paulo em 1919

Em 1931 o prefeito Anhaia Melo, atendendo solicitação da Sociedade Paulista de Belas Artes mudou o nome do Largo São Paulo para Praça Almeida Júnior em homenagem ao artista.

A década de 1950 foi a que mais apresentou atividades no Teatro São Paulo, com apresentações de artistas de renome como Maria Della Costa, Bibi Ferreira, Procópio Ferreira, Oscarito, Mazzaropi e muitos outros. Também nesta década aí foi realizado, por vários anos, o Festival de Teatro Amador além de ter sido palco para os famosos Teleteatros Tupi, nos primórdios da televisão paulista.

No ano de 1953 aprovou-se um projeto autorizando a mudança provisória da Câmara Municipal para o Teatro São Paulo enquanto o novo Paço Municipal era construído, porém em 1954 esta ideia foi abandonada e o Teatro então passou por uma reforma na qual perderia suas cúpulas.

Dec 1950O Teatro São Paulo na década de 1950, após a reforma

Até que em maio de 1967 o prefeito Faria Lima determinou a demolição do velho teatro para a abertura da Radial Leste-Oeste e o viaduto Mie Ken na Rua da Glória. Assim o antigo Largo São Paulo deixou de existir em sua configuração original e a Praça Almeida Júnior foi reduzida às suas proporções atuais.

Não restaram vestígios do lugar onde “o cupido travesso fez diabruras”, Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães faziam suas odes à Satã, houve brigas e mortes por negócios com carne e espetáculos teatrais divertiram o paulistano.

Um visitante do passado andando pela Rua da Glória estranharia:

– Cadê a praça que estava aqui?

– A avenida comeu!

Fontes
SEVCENKO, Nicolau – A cidade metástasis e urbanismo inflacionário: incursões na entropia paulista.
FREITAS, Affonso A. de – Tradições e Reminiscências Paulistanas.
FREITAS, Affonso A. de – Plan-História da Cidade de São Paulo 1800-1875.
VAMPRÉ, Spencer – Álvares de Azevedo na Academia.
Jornal O Correio Paulistano, diversas edições.
Jornal O Estado de S. Paulo, diversas edições.
Lei Municipal 1393 de 20/03/1911

Categorias:Sem categoria

Venha conhecer o patrimônio paulista antes que ele acabe

O Turismo na História tem três passeios programados para o próximo final de semana:

Dia 14 de novembro, sábado:

– Manhã: HIGIENÓPOLIS – Personagens, arquitetura, tradição e modernidade.

– Tarde: Marquesa de Santos, a história não contada! Muito além de amante, um pouco da história de uma das mulheres mais controversas do século XIX.

Dia 15 de novembro, domingo:

– Manhã: Visita guiada ao Cemitério da Consolação, com o tema: A República, seus personagens e novas histórias a respeito do mais antigo cemitério paulista

Valor dos passeios: R$ 35,00 mais informações em www.turismonahistoria.com.br