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Archive for the ‘Iconografia’ Category

Túnel da Mantiqueira

Quem gosta de história de São Paulo, sobretudo ferroviária ou a respeito da Revolução de 1932, já deve ter topado com o famoso Túnel da Mantiqueira.

Construído pela The Minas and Rio Railway em 1882, o túnel possui quase 1 km de extensão e liga as cidades de Cruzeiro e Passa Quatro.

Foi cenário importante durante a Revolução de 1932 pois tornou-se palco da principal batalha travada entre as tropas paulistas e as tropas leais a ditador Getúlio Vargas. Nesse local, fora e dentro do túnel, cerca de 250 paulistas perderam a vida ao defender o terreno do avanço das tropas federais.  Durante dois meses, de 10 de julho de 1930 até 12 de setembro os paulistas conseguiram manter o túnel, porém, com o avanço mineiro em outras linhas de batalha, os francos dos que guardavam o túnel acabaram desprotegidos e os paulistas acabaram por abandonar a posição.

Na foto abaixo, D. Pedro I, a Imperatriz Tereza Cristina, a Princesa Isabel, seu marido o Conde D´Eu, posam junto com operários, empresários e ministros na boca do Túnel da Mantiqueira em fins de 1882.

Grupo tirado na entrada do túnel da Mantiqueira, lado paulista, quando ainda estava em construção. No primeiro plano, da esquerda para direita: d. Pedro II, d. Augusto Leopoldo, d. Teresa Cristina, conde d' Eu, princesa Isabel, d. Pedro Augusto e Luís Pedreira do Couto Ferraz, visconde do Bom Retiro. Atrás da imperatriz, no último plano, ministro da Guerra Afonso Augusto Moreira Pena, usando bigodes e chapéu. Vê-se ainda Joaquim Delfino Ribeiro da Luz, senador; Jesuíno Lamego Costa, barão de Laguna; Manuel Alves de Araújo, ministro da Agricultura; Afonso Celso de Assis Figueiredo, visconde de Ouro Preto; Christiano Benedito Otoni, senador e construtor da Estrada de Ferro D. Pedro II; Josefina da Fonseca Costa, baronesa da Fonseca Costa; Herbert Edgell Hunt, empreiteiro representante da Waring Irmãos; engenheiros Burnier e Alvim; engenheiro fiscal Francisco Miranda de Azevedo e o seu irmão, médico da Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II; deputado geral Olímpio Oscar de Vilhena Valadão; engenheiro Ferreira Pena; Parreiras Horta (do Ministério da Agricultura) e major Manuel de Freitas Novais. [Marc Ferrez]. 25 de junho de 1882. Colódio?, 50 x 40,7 cm. Coleção Museu Imperial (III-1-1-Nº 1)

Grupo tirado na entrada do túnel da Mantiqueira, lado paulista, quando ainda estava em construção. No primeiro plano, da esquerda para direita: d. Pedro II, d. Augusto Leopoldo, d. Teresa Cristina, conde d’ Eu, princesa Isabel, d. Pedro Augusto e Luís Pedreira do Couto Ferraz, visconde do Bom Retiro. Atrás da imperatriz, no último plano, ministro da Guerra Afonso Augusto Moreira Pena, usando bigodes e chapéu. Vê-se ainda Joaquim Delfino Ribeiro da Luz, senador; Jesuíno Lamego Costa, barão de Laguna; Manuel Alves de Araújo, ministro da Agricultura; Afonso Celso de Assis Figueiredo, visconde de Ouro Preto; Christiano Benedito Otoni, senador e construtor da Estrada de Ferro D. Pedro II; Josefina da Fonseca Costa, baronesa da Fonseca Costa; Herbert Edgell Hunt, empreiteiro representante da Waring Irmãos; engenheiros Burnier e Alvim; engenheiro fiscal Francisco Miranda de Azevedo e o seu irmão, médico da Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II; deputado geral Olímpio Oscar de Vilhena Valadão; engenheiro Ferreira Pena; Parreiras Horta (do Ministério da Agricultura) e major Manuel de Freitas Novais.
[Marc Ferrez]. 25 de junho de 1882. Colódio?, 50 x 40,7 cm.
Coleção Museu Imperial (III-1-1-Nº 1)

Carnaval em São Paulo no início do século XX

Acabo de receber o cartão de final de ano do Paulo Kuczynski – Escritório de Arte. A foto é de um óleo mostrando o Carnaval na cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX. Ajudei eles a identificarem o local, que é a praça Antonio Prado, tendo ao fundo o escritório do Correio Paulistano, ao lado do Café Paulista. Muito linda a tela.

carnaval

São Paulo em 1944

Filme feito em 194 pela coordenção de Assuntos Interamericanos para promover as relações amistosas entre Brasil e Estados Unidos no meio da II Guerra Mundial. Imperdível!!!

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Fotografia e vivências do espaço urbano paulistano no início do século XX

A Casa da Imagem de São Paulo inicia a programação de 2012 debatendo, a partir da fotografia, o relacionamento de seus habitantes com o espaço urbano,
intensamente modificado neste período.

Sábado, 10 de março às 11h
Fraya Frehse
Regras das ruas diante e atrás da câmera na São Paulo do início do século XX

Confrontando fotografias de rua de Guilherme Gaensly, de Aurélio Becherini, de Vincenzo
Pastore e do anônimo autor das imagens da Greve Geral de 1917 publicadas na revista A Cigarra, cabe apresentar as evidências ali contidas acerca de regras de comportamento corporal e de interação social que vigoraram entre os pedestres das ruas do centro histórico paulistano nas primeiras duas décadas do século XX. Será possível discutir assim achados do recém-lançado livro Ô da Rua! O Transeunte e o Advento da Modernidade em São Paulo (Edusp, 2011).
Sábado, 17 de março às 11h
Rubens Fernandes Junior
O cotidiano urbano nas fotografias de Gaensly

Através das fotografias de Guilherme Gaensly em exposição na Casa da Imagem, evidenciar alguns índices que potencializam o cotidiano da cidade. Perceber o que ganha
destaque na imagem e através dela entender a importância de algumas atividades e de alguns movimentos na emergência da metrópole. Apesar do relatos dos viajantes,
das suas gravuras, desenhos e pinturas, é a fotografia que ocupa o lugar mais significativo como documento iconográfico no período.

45 vagas, serão distribuídas senhas a partir das 10h15

Casa da Imagem
Rua Roberto Simonsen, 136-B
Pátio do Colégio
Sugerimos usar taxi ou metrô (Metrô Sé/São Bento)
Informações: 6051 3807 – contato.casai@prefeitura.sp.gov.br

Realização
Prefeitura de São Paulo
Secretaria Municipal de Cultura
Departamento do Patrimônio Histórico
Museu da Cidade de São Paulo / Casa da Imagem de São Paulo

Fraya Frehse é professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), onde fez a graduação em Ciências Sociais, além do mestrado e do doutorado em Antropologia Social, com um “doutorado-sanduíche” na Universidade de Oxford. Em 2010 concluiu um pós-doutoramento em sociologia urbana nas universidades Livre e Humboldt, de Berlim, sob os auspícios da Alexander von Humboldt Foundation. Pesquisadora associada do Núcleo de Antropologia Urbana da USP e pesquisadora colaboradora da Rede Brasil-Portugal de Estudos Urbanos, coordena também o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Sociologia do Espaço na USP. É autora de O Tempo das Ruas na São Paulo de Fins do Império (2005) e de Ô da Rua! O Transeunte e o Advento da Modernidade em São Paulo (2011), ambos pela Edusp, além de co-organizadora (com Samuel Titan Jr.) de Roger Bastide. Impressões do Brasil (Imprensa Oficial, 2011), contando com contribuições em revistas especializadas e coletâneas no Brasil e no exterior.
Rubens Fernandes Junior é pesquisador, curador e crítico de fotografia, com importantes trabalhos na área. É, ainda, diretor da Faculdade de Comunicação e Marketing da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). É autor de Labirinto e identidade – Panorama da fotografia no Brasil [1946-1998] (2003), organizador de Otto Stupakoff (2006) e Geraldo de Barros (2006), e colaborador nos livros Da Antropofagia à Brasília – Brasil 1920-1950, B. J. Duarte, Aurélio Becherini e Guilherme Gaensly, todos pela editora CosacNaify, os três últimos co-patrocinados pela Secretaria Municipal de Cultura. É membro do conselho curador da Coleção Pirelli-MASP de Fotografia e da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

O retorno da velha senhora, ou a volta da Marquesa de Santos

Foi inaugurado no último dia 19, após três anos de restauro, o Solar da Marquesa de Santos, no centro de São Paulo, bem ao lado do Pátio do Colégio. Também foram reabertos os recém-restaurados Beco do Pinto e Casa Número 1, atual Museu da Imagem da Cidade de São Paulo.

Casa nº 1, Beco do Pinto e Solar da Marquesa de Santos

Da esquerda para a direita: Casa nº 1, que abriga o Museu da Imagem, o pórtico do Beco do Pinto e Solar da Marquesa de Santos. Fotomontagem do Arquiteto Victor Hugo Mori

O solar é considerado o último exemplar residencial urbano do século XVIII da cidade. Infelizmente somente as paredes de taipa de pilão e de mão, parte da fachada e a disposição de algumas salas do andar superior mantêm resquícios de como era o local na época em que a marquesa de Santos lá morou. As sucessivas reformas por que o Retrato da Marquesa de Santos que veio do Rio de Janeiro para a mostraimóvel passou descaracterizaram profundamente sua disposição interior. Após a morte do filho mais velho de Domitila, Felício, que herdou o imóvel, o solar foi leiloado e adquirido pela Cúria Metropolitana. A residência do bispo de São Paulo lá funcionou de 1880 até 1909 e existem relatos de que a capela, que ficava no andar superior, foi utilizada para casamentos e batizados. Depois de 1909 o local foi sede da The San Paulo Gas Company Ltda. Após a encampação dessa companhia, que passou a chamar-se Comgás, o solar passou para a Secretaria de Cultura do Município de São Paulo.

Hoje, a parte de baixo, que originariamente servia para os trabalhos domésticos, estocaPrato pertencente a Marquesa de Santosgem de gêneros alimentícios etc., abriga uma exposição que nos leva ao tempo de uma São Paulo mais calma, onde o cantar do carro de boi era uma constante. Os painéis nos conduzem a um passeio através da evolução histórica do entorno, física e psicologicamente.  Uma bela e bem conservada cadeirinha de arruar mostra como as damas, do calibre da mais ilustre moradora da casa, eram transportadas por seus escravos pelas ruas da velha São Paulo.

Em um canto, próximo da cadeirinha, encontram-se alguns achados arqueológicos. Se pertenciam todos a Domitila, ou à família, é difícil saber. O beco, ao lado do imóvel, pode ser considerado como o mais antigo caminho paulista. Durante décadas foi usado por escravos que iam jogar o lixo de seus senhores no rio Tamanduateí. As diversas disputas tendo por motivo a divisa entre o beco e os lotes confrontantes nos mostram o hábito de escravos preguiçosos que descarregavam seus monturos no quintal do brigadeiro Joaquim José Pinto de Morais Leme, antigo proprietário do solar e que acabou dando seu nome ao beco.

A parte da exposição que mais tem atiçado a curiosidade está no andar superior do imóvel. Antes de subir, vale a pena a leitura de um grande painel onde a vida de Domitila é contada cronologicamente.

Ao vencermos o lance que nos leva ao segundo pavimento, um pequeno aposento do lado esquerdo abriga uma exposição sobre as cartas trocadas entre a marquesa de Santos e seu amante, d. Pedro I. Além de algumas fotos de cartas originais, existem outras transcritas em letras brancas sobre acrílico transparente. E aí temos um problema para quem, como eu, sofre com dificuldades de visão (corrigido, meus olhos e de vários outros agradecem. Agora só falta correções ortográfivas em alguns painéis, como o caso de um dos filhos da Domitila ter morrido “bebe”, cirrose talvez?) . O fundo das vitrines é amarelo e, dependendo da luz incidente, torna-se um suplício ler o que está escrito. O mesmo ocorre com diversas outras placas explicativas ao longo da exposição.

Fotos da Marquesa de Santos idosaA mostra “Marquesa de Santos: uma mulher, um tempo, um lugar”, apesar de se focar principalmente na vida de Domitila após seu retorno a São Paulo em 1829, não poderia deixar de lado, mesmo que com uma referência pequena, como ocorreu, o caso dela com o imperador. Afinal, se Domitila era filha de família ilustre, os processo envolvendo seu pai por falta de pagamento de aluguéis, antes de ela se envolver com d. Pedro I, mostra claramente que se ascendJogo de cadeiras e mesa para chá pertencentes a marquesaentes ilustres existiam em seus costados, dinheiro não.

O caso com d. Pedro abriu-lhe não somente livre acesso a um nível social de que não dispunha em São Paulo como ao enriquecimento obtido ao pé do trono. Domitila, que partira para a corte sem posses, retornaria para São Paulo com uma fortuna em joias, títulos e 52 escravos. Nesse período, o preço médio de um escravo era de 170 mil réis; a soma geral deles daria algo em torno de 9 contos. Para se ter uma ideia do que isso representava em valor da época, em 1834 a marquesa pagou pelo solar 11 contos de réis. Uma enorme casa muito bem localizada, próxima do centro de poder paulista. Tobias de Aguiar, seu novo amante e futuro marido, despachava no Palácio do Governo no Pátio do Colégio, quase em frente ao solar.

A próxima sala nos mostra a delicadeza das formas de Domitila. Não é outro o pensamento que surge ao observarmos o conjunto de mesa e cadeiras para chá.

Diversos retratos, inclusive um que não se parece nada com ela, vieram de várias instituições governamentais. Aliás, esse é um traço forte da exposição: nenhuma peça veio de colecionadores particulares. Nessa sala podemos observar o célebre retrato de Domitila jovem que pertence ao Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. Após conversa com o editor Pedro Correa do Lago, da Capivara, parece que em 5 de dezembro teremos outro “suspeito” de ter pintado esse retrato, mas isso é outro artigo para este blog. Essa sala, não só a mim, mas a diversas pessoas com quem conversei, causou bastante impacto. São três telas a óleo retratando Domitila, além de duas fotos, móveis, textos de biógrafos e notícias de jornais ligando-a a temas, como a maçonaria e a Guerra do Paraguai. Se nem as cartas de amor fizeram você se emocionar, duvido que passe incólume por essa overdose de rostos que, envelhecendo, o contemplam com uma pergunta: “O que está fazendo na minha casa?”.

A velha senhora voltou!

A marquesa de Santos foi expulsa novamente de sua casa no Rio de Janeiro no começo de 2011. O Museu do Primeiro Reinado foi desativado, e seu acervo, enviado para um museu em Niterói. Domitila retornou à Pauliceia, onde foi reentronada no seu velho solar da antiga Rua do Carmo em apoteose. Mal se andava no local no dia da inauguração. Todos queriam ver as cartas, o retrato da amante, sua cama, o faqueiro e ouvir histórias a respeito dela. Domitila retornou e veio para ficar.

2011 abriu e fechou tendo Domitila de volta ao noticiário nacional. Em março foi o lançamento do meu livro “Titília e o Demonão”, trazendo as cartas perdidas escritas por d. Pedro à sua amante; em novembro, a reabertura do solar e a exposição. Em 2012 haverá mais. Em março: o lançamento da obra “A Carne e o Sangue”, na qual a historiadora Mary Del Priore biografa o triângulo amoroso Leopoldina x Pedro x Domitila, e em setembro: “Domitila, a verdadeira história da marquesa de Santos”. Aguardem!

Museu da Cidade de São Paulo
Rua Roberto Simonsen, 136, Sé, centro, São Paulo, SP.
Tel.: (11)3105-6118. Ter. a dom.: 9h as 17h. Entrada grátis

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São Paulo vista por Satã / Álvares de Azevedo

O poeta Álvares de Azevedo nasceu em São Paulo, mas muito cedo mudou-se para a Corte, voltando para cá duas vezes, sendo que na última frequentou o Curso Jurídico instalado no velho mosteiro franciscano.

A sua correspondência com sua mãe –  a parte que sobreviveu e foi publicada –  mostra muito do rapaz acostumado com as mordomias da capital do império em detrimento à vida enfadonha da capital da província paulista. Mas, além de fofocas de baile, dos vestidos, penteados e jóias, que estranhamente parecem encantar o autor de “Se eu morresse amanhã”, ele nos legou uma saborossíssima crônica sobre São Paulo no seu “Macário”, onde fala sobre os tipos paulistas e os hábitos da época (final da década de 1840 e começo dos 50).

Macário, o personagem da peça, é um estudante e poeta romântico que vem estudar na capital, e em uma taverna, após vencer a Serra do Mar, encontra um misteriosos companheiro de viagem, que revela-se depois ser Satã. É através do próprio Tinhoso que Álvares de Azevedo despeja toda sua crítica à capital paulista.

MACÁRIO

– Tudo isso não prova que ele não trota danadamente. Falta-nos muito para chegar?

SATÃ

– Não. Daqui a cinco minutos podemos estar à vista da cidade. Hás de vê-la desenhando no céu suas torres escuras e seus casebres tão pretos de noite como de dia, iluminada, mas sombria como uma essa de enterro.

Vista da cidade de São Paulo da estrada de Santos, 1839

MACÁRIO

– Tenho ânsia de lá chegar. É bonita?

SATÃ ( boceja )

– Ah! é divertida.

MACÁRIO

– Por acaso também há mulheres ali?

SATÃ

– Mulheres, padres, soldados e estudantes. As mulheres são mulheres, os padres são soldados, os soldados são padres, e os estudantes são estudantes: para falar mais claro: as mulheres são lascivas, os padres dissolutos, os soldados ébrios, os estudantes vadios. Isto salvo honrosas exceções, por exemplo, de amanhã em diante, tu.

MACÁRIO

– Esta cidade deveria ter o teu nome.

SATÃ

– Tem o de um santo: é quase o mesmo. Não é o hábito que faz o monge. Demais, essa terra é devassa como uma cidade, insípida como uma vila e pobre como uma aldeia. Se não estás reduzido a dar-te ao pagode, a suicidar-te de spleen, ou a alumiar-te a rolo, não entres lá. É a monotonia do tédio. Até as calçadas!

MACÁRIO

– Que têm?

SATÃ

– São intransitáveis. Parecem encastoadas as tais pedras. As calçadas do inferno são mil vezes melhores. Mas o pior da história é que as beatas e os cônegos cada vez que saem, a cada topada, blasfemam tanto com o rosário na mão que já estou enjoado. Admiras-te? por que abres essa boca espantada? Antigamente o diabo corria atrás dos homens, hoje são eles que rezam pelo diabo. Acredita que faço-te um favor muito grande em preferir-te à moça de um frade que me trocaria pelo seu Menino Jesus, e a um cento de padres que dariam a alma, que já não têm, por uma candidatura.

Uma das pontes de alvenaria sobre o Tamanduatei, com o mosteiro e a igreja do Carmo no alto da ladeira

MACÁRIO

– Mas, como dizias, as mulheres…

SATÃ

– Debaixo do pano luzidio da mantilha, entre a renda do véu, com suas faces cor-de-rosa, olhos e cabelos pretos (e que olhos e que longos cabelos!) são bonitas. Demais, são beatas como uma bisavó; e sabem a arte moderna de entremear uma Ave-Maria com um namoro; e soltando uma conta do rosário lançar uma olhadela.

Detalhe de uma aquarela de Eduard Hildebrandt mostrando as mulheres paulistas, tanto criança quanto adulta, cobertas dos pés a cabeça, para sairem à rua. O desenho é de 1844

MACÁRIO

– Oh! a mantilha acetinada! os olhares de andaluza! e a tez fresca como uma rosa! os olhos negros, muito negros, entre o véu de seda dos cílios!.. Apertá-las ao seio com seus ais, seus suspiros, suas orações entrecortadas de soluços! Beijar-lhes o seio palpitante e a cruz que se agita no seu colo, apertar-lhes a cintura, e sufocar-lhes nos lábios uma oração… Deve ser delicioso!

SATÃ

– Tá! tá! tá… Que ladainha… parece que já estás enamorado, meu Dom Quixote, antes de ver as Dulcinéias!

MACÁRIO

– Que boa terra! É o Paraíso de Mafoma!

SATÃ

– Mas as moças poucas vezes tem bons dentes. A cidade colocada na montanha, envolta de várzeas relvosas, tem ladeiras íngremes e ruas péssimas. É raro o minuto em que não se esbarra a gente com um burro ou com um padre. Um médico que ali viveu e morreu deixou escrito numa obra inédita, que para sua desgraça o mundo não há-de ler, que a virgindade era uma ilusão. E contudo não há em parte alguma mulheres que tenham sido mais vezes virgens que ali.

MACÁRIO

– Têm-se-me contado muito bonitas histórias. Dizem na minha terra que aí, à noite, as moças procuram os mancebos, que lhes batem à porta, e na rua os puxam pelo capote Deve ser delicioso! Quanto a mim, quadra-me essa vida excelentemente; nem mais nem menos que um Sultão escolherei entre essas belezas vagabundas a mais bela. Aplicarei contudo o ecletismo ao amor. Hoje uma, amanhã outra: experimentarei todas as taças. A mais doce embriaguez é a que resulta da mistura dos vinhos.

SATÃ

– A única que tu ganharás será nojenta. Aquelas mulheres são repulsivas. O rosto é macio, os olhos lânguidos, o seio morno… Mas o corpo é imundo. Têm uma lepra que ocultam num sorriso. Bofarinheiras de infâmia dão em troco do gozo o veneno da sífilis. Antes amar uma lazarenta!

MACÁRIO

– És o diabo em pessoa. Para ti nada há bom. Pelo que vejo, na criação só há uma perfeição, a tua. Tudo o mais nada vale para ti. Substância da soberba, ris de tudo o mais embuçado no teu desdém. Há uma tradição, que quando Deus fez o homem, veio SATÃ; achou a criatura adormecida, apalpou-lhe o corpo: achou-o perfeito, e deitou aí as paixões.

SATÃ

– Essa história é uma mentira. O que Satã pôs aí foi o orgulho. E o que são vossas virtudes humanas senão a encarnação do orgulho?

MACÁRIO

– Oh! Ali vejo luzes ao longe. Uma montanha oculta no horizonte. Disséreis um pântano escuro cheio de fogos errantes. Por que paras o teu animal?

SATÃ
– Tenho uma casa aqui na entrada da cidade. Entrando à direita, defronte docemitério. Sturn, meu pajem, lá está preparando a ceia. Levanta-te sobre meus ombros: não vês naquele palácio uma luz correr uma por uma as janelas? Sentiram a minha chegada.

Chácara dos Ingleses, localizada próximo ao cemitério dos Aflitos, na entrada da cidade. Transformada em uma república de estudades, Alvares de Azevedo ai morou

MACÁRIO

– Que ruínas são estas? É uma igreja esquecida? A lua se levanta ao longe nas montanhas. Sua luz horizontal banha o vale, e branqueia os pardieiros escuros do convento. Não mora ali ninguém? Eu tinha desejo de correr aquela solidão.

SATÃ

– É uma propensão singular a do homem pelas ruínas. Devia ser um frade bem sombrio, ébrio de sua crença profunda, o Jesuíta que aí lançou nas montanhas a semente dessa cidade. Seria o acaso quem lhe pôs no caminho, à entrada mesmo, um cemitério à esquerda e umas ruínas à direita?

MACÁRIO

– Se quisesses, Satã, podíamos descer pelo despenhadeiro, e ir ter lá embaixo, enquanto Sturn prepara ceia.

SATÃ

– Não, Macário. Minha barriga está seca como a de um eremita; deves também ter fome. Molhar os pés no orvalho não deve ser bom para quem vem de viagem. Vamos cear. Daqui a pouco o luar estará claro e poderemos vir.

MACÁRIO

Fiat voluntas tua.

SATÃ

Amen! (…)

Estadão repagina-se e apaga história paulistana

Este ano, o jornal “O Estado de São Paulo” mudou de visual, e de símbolo. Ao estilizar seu logotipo, apagou a paisagem bucólica de uma São Paulo provinciana.

O ex-libris tomado como logo prestava uma homenagem ao primeiro jornaleiro paulistano, o francês Bernard Gregoire, que em 1876 passou a andar vagarosamente com o seu cavalo pelas estreitas ruas de São Paulo de Piratininga, tocando sua corneta e anunciando a venda da edição do dia de “A Província de São Paulo”, por 40 réis. O jornal “A Província” viria, anos mais tarde a se transformar em “O Estado de São Paulo”.

Além de Gregoire, o ex-libris retrata uma paisagem que já não existe mais. A construção às costas do jornaleiro é o prédio da antiga Sé de São Paulo, demolido no começo do século passado, e a outra edificação é a antiga Igreja de São Pedro, igualmente desaparecida. Para o paulistano localizar-se, nos dias de hoje o prédio da Caixa Econômica, na Praça da Sé, ocupa o lugar da igreja de São Pedro, enquanto que a igreja da Sé tem seu lugar assinalado pela estátua de Anchieta em um canto da atual praça da Catedral paulistana, próximo à Rua Direita.

Nos anos 30 do século XX, o artista José Wasth Rodrigues (1891-1957) confeccionaria para o jornal esse ex-libris. Wasth Rodrigues foi um importante pintor e desenhista paulistano do início do século. Seus trabalhos são os mais variados: é autor do desenho do brasão da cidade de São Paulo, em coautoria com Guilherme de Almeida; realizou as pinturas dos azulejos dos monumentos do antigo Caminho do Mar e da reurbanização do Largo da Memória; fez pesquisas históricas e arquitetônicas que deram origem a livros como o “Documentário Arquitetônico”, ainda hoje editado, e o raríssimo “Uniformes do Exército Brasileiro”, em coautoria com Gustavo Barroso. Dedicou-se à pintura de óleos e aquarelas, sempre com motivos brasileiros, por conta de seu nacionalismo convicto.

E assim, com este post, inauguro este espaço, que mais que um muro de lamentação pelo descaso com a história paulistana, tem a pretensão de ser um canto de histórias e “causos” sobre a cidade. Aqui pretendo falar de seu passado, de seus fantasmas, da beleza de uma cidade que, como algumas mulheres, não se entrega fácil a um primeiro e descuidado olhar.