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Os Caifazes de Antônio Bento

Remedios 1887p

Igreja dos Remédios no antigo Largo Municipal em 1887, hoje Praça João Mendes.

Por Edison Loureiro

A Igreja que aparece na foto não existe mais. Foi demolida em 1943 como parte do Plano de Avenidas do prefeito Francisco Prestes Maia. Ela estaria onde hoje é o meio da praça João Mendes. Do lado direito, onde aparece aquela casa baixa com um lampião fixado na parede seria o começo da Avenida da Liberdade.

A construção que vemos é de 1825. É uma reconstrução da capela original que, segundo alguns historiadores, foi erguida aí em 1727. Há controvérsias, mas vamos deixar para outra ocasião porque o que nos interessa neste momento está nos fundos desta igreja, que dava para a Rua do Quartel, atual Rua Onze de Agosto.

Ali começou a funcionar em janeiro de 1887, o jornal A Redempção – Folha Abolicionista, Commercial e Noticiosa, cujo redator-chefe era o conhecido Dr. Antonio Bento.

Seu nome completo era Antonio Bento de Souza e Castro. Nascido em 17 de fevereiro de 1843, era filho de família abastada, Formou-se na Faculdade de Direito do largo São Francisco em 1868, foi promotor em Botucatu e Limeira e juiz municipal em Atibaia com 29 anos, acumulando as funções de delegado.

Suas atitudes e decisões pouco ortodoxas e mesmo contrárias às formalidades legais, bem como seu temperamento e suas ideias abolicionistas azucrinavam a vida do coronelismo local. Sua atitude de levar a sério a lei de 1831 que proibia o tráfico acabou o indispondo com a elite local, chegando a sofrer tentativa de assassinato.  Ocorre que aquela lei era “para inglês ver”, literalmente, pois foi feita para atender às pressões da Inglaterra e nunca foi respeitada plenamente. Antonio Bento acabou demitido no final da década de 1870.

Era um tipo diferente da maioria dos bacharéis da segunda metade do século XIX. Segundo Raul Pompéia, “magro, estreitado, do tornozelo à orelha, no longo capote preto como num tubo, chapéu alto, cabeça inclinada, mãos nos bolsos, quebrando contra o peito pela fenda da gola o rijo cavaignac de arame, o olhar disfarçado nos óculos azuis como uma lâmina no estojo, marcha retilínea de passo igual tirado sobre articulações metálicas” De volta à São Paulo dedicou-se ao jornalismo e à advocacia e a partir de 1880 junta-se ao grupo abolicionista de Luiz Gama.

Através dos jornais que fundou não temia os poderosos e achincalhava todos os escravocratas. Atacou até mesmo o então bispo auxiliar de São Paulo, o futuro cardeal Arcoverde, responsável pelo regulamento do Seminário Episcopal que não permitia a admissão de negros entre seus alunos, nem entre os pagantes.

Dois anos depois, após a morte de Luiz Gama, diante do túmulo de seu amigo, Antonio Bento assume a liderança dos abolicionistas e organiza uma organização secreta que nos tempos modernos seria considerada grupo guerrilheiro. Ficou conhecida como o Movimento dos Caifazes.

O nome Caifazes foi inspirado em uma passagem do evangelho de São João (João 11:49 a 51): “Um deles chamado Caifás, que era sumo sacerdote daquele ano, disse-lhes: ‘Vós não entendeis nada! Nem considereis que nos convém que morra um só homem pelo povo, e que não pereça toda a nação.”

Enquanto Luiz Gama usava expedientes jurídicos na sua luta pela abolição da escravidão, os caifazes de Antonio Bento usavam um método bastante diferente.

Seus colaboradores, os cometas, que chegaram a centenas, agiam disfarçados de caixeiros-viajantes. Formavam pequenos grupos bem organizados que se espalhavam pelas cidades e fazendas e literalmente roubavam escravos das famílias, promoviam fugas em massa e realizavam operações de resgate em estações ferroviárias. Depois de ocultar os escravos nas igrejas, ou mesmo em estabelecimentos comerciais e moradias, estes eram encaminhados ao Quilombo do Jabaquara em Santos por onde, calcula-se, passaram mais de 10.000 escravos. Na cidade de Santos o abolicionismo era um unanimidade entre os habitantes. O escravo que conseguia chegar àquela cidade estava de facto livre, e mais, conseguia arrumar trabalho remunerado nas operações de carga e descarga de café no porto.

Existia a alternativa de encaminhar os fugidos para a Província do Ceará que já havia abolido a escravidão em seu território por decreto do presidente provincial em 25 de março de 1884.

Antonio Bento era uma pessoa muito bem relacionada. Além de provedor da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios e membro da loja maçônica Piratininga que ficava na Rua Líbero Badaró esquina com a Ladeira de São João, onde convivia com a elite, circulava pelas irmandades negras como a de Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e Santo Elesbão. Com isso conseguia adeptos desde as classes mais abastadas até gente simples do povo, que dava total cobertura para as operações mais arriscadas, como os cocheiros de carros de aluguel que em São Paulo, com uma única exceção eram todos caifazes. Os ferroviários em especial facilitavam o contrabando dos negros fugidos.

O movimento dos caifazes tornou-se uma verdadeira rede clandestina de solidariedade que não só desorganizava o trabalho escravo, como também procurava dar abrigo e inserir o refugiado no mercado de trabalho. Quando Quilombo do Jabaquara estava ficando saturado e também em São Paulo não havia mais onde acoitar os escravos, Antonio Bento teve uma ideia estranha: Fazer um trato com os fazendeiros que tinham sido “roubados” propondo que recebessem escravos tirados de outras fazendas, porém com na condição de empregados com salário de 400 réis por dia de trabalho. Funcionou. Quando a lei Áurea foi assinada, um terço das fazendas paulistas era trabalhado por ex-escravos originários de outras fazendas.

A atividade dos cometas por certo não era desprovida de risco. Houve, por exemplo, o caso de um caifaz de nome Antonio. Preto, atarracado, olhos vivos, cuja especialidade era penetrar durante a noite o cercado quadrado onde eram alojados os escravos das fazendas para convencê-los a fugir. Numa noite daquelas foi assassinado ao transpor a porteira de uma fazenda em Descalvado.

Um fato porém marcou a cidade de São Paulo. Numa fazenda do interior existia um senhor de escravos particularmente cruel no martírio de seus escravos. Um deles, chamado Antonio foi dependurado por longos dias por uma corrente presa ao pescoço, de tal forma que o coitado somente conseguia alcançar o chão com a ponta dos pés. Para aumentar a tortura, as palmas de suas mãos eram feridas à ponta de faca.

O caifazes conseguiram apoderar-se de Antonio e trazê-lo à São Paulo. Antonio Bento organizou então uma procissão com todos os irmãos da Confraria dos Remédios. Uma procissão impressionante. Entre os andores dos santos, apareciam suspensos em varas, os mais variados instrumentos de tortura utilizados na época: Grilhões, cangalhas, relhos, golilhas, etc. Na frente, debaixo da imagem de Cristo crucificado seguia o negro torturado a pé, que havia enlouquecido pela dor.

A impressão causada na população foi tão profunda que nem a polícia ousou intervir.

Conforme o depoimento de um dos caifazes feito em 1918, “daí em diante as portas das cidades ficaram abertas aos magotes de fugitivos”.

O sentimento abolicionista tornou-se cada vez mais forte e disseminado por todas as classes sociais e conforme concluiu a professora Maria Lúcia Montes, “Quando as próprias forças de segurança começaram a se recusar a perseguir os escravos fugidos tal o seu número, não era difícil antever a proximidade da abolição. Muito mais que uma concessão do poder imperial, ela foi, em São Paulo, uma conquista do povo e dos próprios escravos”.

Fontes

1 – Jornal O Estado de S. Paulo de 13-05-1918. Depoimento de Antonio Manuel Bueno de Andrada

2 – Montes, Maria Lúcia. Artigo “Teje Livre”, publicado em http://www.revistadehistoria.com.br/secao/perspectiva/teje-livre.

3 – Bruno, Ernani Silva. “História e Tradições da Cidade de São Paulo”, pg. 1224.

4 – Azevedo, Elciene. “Antonio Bento, um homem rude do sertão: um abolicionista nos meandros da justiça e da política”, in Revista de História, Juiz de Fora, v. 13, n.1, p. 123-143, 2007.

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  1. carla_battistella@hotmail.com
    24/03/2015 às 19:59

    Como se aprende ,lendo seus artigos. Muito bom!

  2. Dagmar Aurelia scatena
    13/05/2015 às 18:11

    Esta matéria possui muitos conteúdos importantes que são desconhecidos, pela maioria da população: Quantas histórias dramáticas, tiveram a nossa cidade, como cenário!

  3. 20/11/2015 às 23:19

    Vocês tem foto do antigo Cine Santa Cecília ? como posso conseguir ? Sou do grupo Memórias Paulistanas do Edson Loureiro no Facebook. Meu email para a resposta é marcosedu.pessoal@gmail.com

  4. Luiz Antonio Muniz de Souza e Castro
    19/08/2020 às 15:37

    História brasileira: os bastidores da luta contra a escravidão e o caos político na escravidão das consciências

    A Redenção de Antônio Bento

    Resultado de pesquisa de mais de uma década sobre um dos maiores abolicionistas do Brasil é apresentado em lançamento. Produção de Luiz Antônio Muniz de Souza e Castro, bisneto de Antônio Bento, e da professora Débora Fiuza de Figueiredo Orsi

    A Redenção de Antonio Bento é a primeira biografia de um dos maiores abolicionistas brasileiros. De impressionante atualidade, mostra a saga do humanista Antônio Bento, da metade do século XIX, que lutou contra a escravidão, o racismo, a falta de assistência e educação aos negros e aos menos favorecidos, a corrupção no sistema político e judiciário, a mídia corrompida, e a injustiça social. Todos esses vícios de empresários, políticos e governos corruptos, nada altruístas, perpetuaram a escravidão até os dias atuais. A falta de consciência faz com que a base da pirâmide social da Nação, formada por milhões de habitantes, continue submissa sem se dar conta, vivendo na mais profunda miséria, não tendo direito aos serviços básicos essenciais, nesses 322 anos de Colônia e quase dois séculos de Brasil.
    A obra é uma homenagem ao herói e também vem esclarecer diversas controvérsias sobre a vida de Antônio Bento. Luiz Antônio Muniz de Souza e Castro, bisneto direto do biografado, e a professora Débora Fiuza de Figueiredo Orsi apresentam o produto de 10 anos de pesquisa profunda e criteriosa em fontes primárias, enriquecido com informações da viúva de Antônio Bento, que criou o pai do autor e constitui a ponte de gerações pela qual transitaram estes registros históricos.
    Com endosso do sociólogo e político Florestan Fernandes (1920-1995), o lançamento relata a luta contra a escravidão de uma São Paulo na qual prevaleciam os interesses dos escravagistas.

    “Somente Antônio Bento perfilha uma diretriz redentorista, condenando amargamente o engolfamento do passado no presente, através (sic) do tratamento discriminativo e preconceituoso do negro e do mulato. Em consequência, o mito floresceu sem contestação, até que os próprios negros ganharam condições materiais e intelectuais para erguer o seu protesto. Um protesto que ficou ignorado pelo meio social ambiente, mas que teve enorme significação histórica, humana e política. De fato, até hoje, constitui a única manifestação autêntica de populismo, de afirmação do povo humilde como gente de sua autoliberação.” (Florestan Fernandes – A Redenção de Antônio Bento, pág. 26).

    Os bastidores da organização dos Caifazes, movimento abolicionista paulistano, também são destaque na obra, já que Antônio Bento assumiu a liderança da ação após a morte do poeta Luís Gama.
    O volume é rico em fotos, memórias e documentos da vida do juiz considerado “o John Brown brasileiro” por um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, Joaquim Nabuco. O livro contém mais de 300 referências bibliográficas consultadas, mas as principais são as da imprensa de Antônio Bento, como o jornal A Redempção, de 1887 a 1899, reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela Unesco.
    A Redenção de Antônio Bento é uma obra atemporal que provoca reflexão sobre os dias atuais, uma homenagem ao herói que serve também para esclarecer vários pontos controversos sobre sua vida.

    Ficha Técnica
    Título: A Redenção de Antônio Bento
    Autores: Luiz Antônio Muniz de Souza e Castro e Débora Fiuza de Figueiredo Orsi
    Editora: Reality Books
    ISBN: 978-65-00-02695-5
    Páginas: 456
    Formato: 21 x 14 cm
    Preço:
    Link de venda: http://www.antoniobento.com
    Sinopse: Para contar a vida e obra de Antônio Bento (1843 – 1898), os autores mergulharam em pesquisa profunda e criteriosa, em fontes primárias, – trabalho de uma década!-, dando luz a um verdadeiro herói nacional pouco reconhecido, mas que, justamente por isso, concedeu aos autores a chance de levar aos leitores os bastidores da luta contra a escravidão, o comando da Ordem dos Caifazes, a Hospedaria dos Negros – em contraponto à Hospedaria dos Imigrantes -, o Quilombo do Jabaquara, o jornal abolicionista A Redempção, declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco, e tantos outros fatos da época.

    Sobre o autor: Luiz Antônio Muniz de Souza nasceu em São Paulo, é economista, bacharel em Direito e empresário.
    Sobre a autora: Débora de Figueiredo Orsi, paulista, é professora de Língua Portuguesa, editora, redatora e revisora.
    Redes Sociais:
    • Site: http://www.antioniobento.com
    • Facebook: A Redempção

  5. 24/08/2020 às 17:55

    História brasileira:

    “INSPIRA-NOS na continuidade da tua luta contra a escravidão das consciências”

    Ficha Técnica
    Título: A Redenção de Antônio Bento
    Autores: Luiz Antônio Muniz de Souza e Castro e Débora Fiuza de Figueiredo Orsi
    Editora: Reality Books
    ISBN: 978-65-00-02695-5
    Páginas: 456
    Formato: 21 x 14 cm
    Preço:
    Link de venda: http://www.antoniobento.com

    Sinopse: Para contar a vida e obra de Antônio Bento (1843 – 1898), os autores mergulharam em pesquisa profunda e criteriosa, em fontes primárias, – trabalho de uma década!-, dando luz a um verdadeiro herói nacional pouco reconhecido, mas que, justamente por isso, concedeu aos autores a chance de levar aos leitores os bastidores da luta contra a escravidão, o comando da Ordem dos Caifazes, a Hospedaria dos Negros – em contraponto à Hospedaria dos Imigrantes -, o Quilombo do Jabaquara. O volume é rico em fotos, memórias e documentos da vida do juiz considerado “o John Brown brasileiro” por um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, Joaquim Nabuco. O livro contém mais de 300 referências bibliográficas consultadas, mas as principais são as da imprensa de Antônio Bento, como o jornal abolicionista A Redempção, de 1887 a 1899, declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco, e tantos outros fatos da época. A Redenção de Antônio Bento é uma obra atemporal que provoca reflexão sobre os dias atuais, uma homenagem ao herói que serve também para esclarecer vários pontos controversos sobre sua vida.

    Redes Sociais:

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