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O ícone russo da São Bento

Ao entrarmos na igreja do Mosteiro de São Bento, no centro de São Paulo, um ícone russo, no mais puro estilo ortodoxo, recebe os visitantes. Incrustado na primeira coluna à direita do templo, encontramos o Ícone de Nossa Senhora de Kasperovo, ou Kasperovskaya Previataya Bogoroditza.

Nossa Senhora de Kasperovo. Crédito da Imagem: http://imagensdoclaustro.wordpress.com

Trata-se de um ícone de viagem, confeccionado provavelmente na antiga Fábrica de Ícones do Kremlin. As dimensões da imagem original foram reduzidas para 27cm x 22cm, e um trabalho em esmaltes preciosos, rubis e turquesas, além de um manto formado por mais de seis mil pérolas raras do oceano pacífico, tomaram o lugar dos resplendores de prata do original. Por ser um ícone de viagem, era acondicionado em um caixa, que, aberta, também servia como oratório. No fundo dessa caixa, sobre a seda, está estampada a águia bicéfala, símbolo do antigo Império Russo. Logo abaixo da águia há três palavras, que traduzidas significam “Da loja da fábrica imperial”. Atrás do ícone encontram-se gravadas algumas letras “A”, a data do término do ícone, 1893, e o número 84, além da palavra “is magasina” ao lado da imagem de São Jorge. Querem alguns ver nisso uma confirmação do estilo georgiano do ícone, mas pode simplesmente significar que ele foi confeccionado em Moscou, uma vez que o símbolo da cidade era, até a revolução russa de 1918, o santo guerreiro.

O estilo da composição é o “Glicofilusa”, que pode ser traduzido como mãe amorosa, ou virgem da doçura. Tem esse nome devido à posição da Virgem Maria em relação ao menino Jesus: enconstando o seu rosto no da criança, parece acariciá-la, num movimento terno.

Mas o que um ícone russo faz em uma igreja católica? Com a revolução russa de 1918 e a guerra civil que seguiu até 1921, muitos russos emigraram, e alguns vieram para o Brasil. Segundo Dom Martinho Johnson, OSB, da Academia Paulista de História, no encontro dos Oblatos no mês de dezembro de 1985, o ícone “foi doado a Dom Miguel Kruse [Abade da São Bento] por um oficial russo em testemunho de gratidão pelos benefícios concedidos pelo Abade aos refugiados após a Revolução Russa…”.

Capela do Santíssimo Sacramento

Capela do Santíssimo Sacramento. Crédito da foto: http://www.mosteiro.org.br

Essa explicação basta? Acho que não. Quais seriam os “benefícios concedidos” para que essa preciosidade mudasse de mãos? Há muitos anos, no final da década de oitenta, conheci um senhor de aproximadamente setenta anos. Chamava-se Bohdan Bilynskyi, um imigrante ucraniano que, retirado pelos nazistas de sua terra natal, foi obrigado a trabalhar em um fábrica na Alemanha. Depois da guerra, recusando-se a voltar ao “paraíso de Stálin”, veio para o Brasil. O senhor Bilynskyi contou que o ícone foi doado a Dom Miguel Kruse pelo oficial russo em troca de um favor: seria permitido que fossem oficiados na São Bento ritos ortodoxos no idioma russo para os exilados. As cerimônias eram realizadas na capela do Santíssimo Sacramento, à direita do altar-mor, onde o ícone ficava origináriamente dentro de sua caixa, aberta em forma de oratório, sobre um pedestal. Outra versão, muito mais difícil de acreditar, e que é passada de geração em geração pela colônia russa de São Paulo, afirma que o ícone teria sido doado ao mosteiro pelo próprio Nicolau II, último czar da Rússia.

O que conhecemos como “Igreja de São Bento” na realidade chama-se Basílica de Nossa Senhora da Assunção (reparem no vitral art-noveau no altar-mor que fica lindo às 18h, hora da Virgem Maria, devido à incidência dos raios do crepúsculo). Fica no Largo São Bento e pode-se chegar lá de metrô, descendo na estação de mesmo nome. Recomendo assistir à concorridíssima missa de domingo às 10h, vale a pena.

Mosteiro de São Bento. Crédito da Imagem: http://www.mosteiro.org.br