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A Marquesa de Santos e o Teatro Brasileiro – Uma palha da biografia

Em 1824, o imperador D. Pedro I decretou o fechamento do Teatrinho Constitucional São Pedro, no Rio de Janeiro. Os mexericos da época davam o motivo: os proprietários teriam impedido que uma certa senhora entrasse. A história não guardou o nome de quem a barrou, mas de Domitila de Castro, a futura marquesa de Santos, todos já ouviram falar. E esta nunca deixaria o teatro brasileiro.

Domitila entrou para o imaginário popular devido ao seu relacionamento com d. Pedro. Conheceram-se em São Paulo, em agosto de 1822, pouco antes de o jovem dissolver os laços políticos que nos uniam a Portugal. Ela, divorciada do primeiro marido; ele, casado há cinco anos com a arquiduquesa Leopoldina.

A crônica da época nos revela que, na noite de 7 de setembro, após o evento no Ipiranga, a cidade vestiu-se de gala e foi saudar d. Pedro no Teatro da Ópera, no Pátio do Colégio. Houve a apresentação da peça O Convidado de Pedra, de Tirso de Molina, sobre o célebre amante Don Juan, imortalizado por Mozart na ópera “Don Giovanni”. Nela, Leporello, servo do sedutor, conta que seu mestre tinha, só na Espanha, “mille i tre” amantes. D. Pedro, que assinava suas cartas para Domitila como “Demonão”, ficaria tão famoso quanto Don Juan pela quantidade de amantes, reais e atribuídas. Segundo alguns relatos, ele não ficou até o final da peça. Teria saído mais cedo para se encontrar com sua Titília, com quem tinha iniciado um relacionamento em 29 de agosto de 1822.

Quando Domitila foi morar no Rio de Janeiro, em 1823, a convite do já imperador d. Pedro I, o teatro ainda continuaria sendo, por muito tempo, palco de encontros entre ambos.

O comerciante inglês John Armitage deixou registrado o incidente ocorrido em setembro de 1824, quando Domitila foi impedida de entrar no Teatrinho Constitucional sob a alegação de que, por ser uma sociedade particular, somente era permitido o comparecimento de estranhos com convites especiais, que ela não possuía. Ao saber do incidente, o imperador, presente ao evento, retirou-se. Em 22 desse mês, d. Pedro, amparado pela lei que punia sociedades secretas e usando do pretexto de que o grupo teatral não havia submetido seus estatutos ao governo, ordenou que fechassem o teatro. Os artistas foram despejados, e seus trajes e cenários alimentaram uma enorme fogueira. Curioso com a cena, Armitage descobriu que o incidente devia-se à “Nova Castro”, uma referência zombeteira ao romance entre d. Pedro I de Portugal e Inês de Castro, que foi rainha depois de morta. Nome também de uma peça então em moda.

Durante os sete anos em que o relacionamento se desenvolveu, cheio de altos e baixos, ataques de ciúmes e juras de amor, o Imperial Teatro São Pedro de Alcântara, onde hoje se ergue o teatro João Caetano, no centro do Rio de Janeiro, foi um dos cenários onde era possível encontrar socialmente Domitila e d. Pedro sob o mesmo teto. Ele no camarote imperial, e ela, em outro presenteado por ele.

As cartas trocadas entre d. Pedro e Domitila mostram, por exemplo, que ambos eram fãs de peças:

“Como tu tens estado sem ires (e por mui justo motivo) ao Teatro, e tendo nós muito apetite de assistirmos à Comédia Francesa, e podendo-o não ir eu hoje ao Teatro, e ir depois de amanhã parecer combinação entre nós (…)” 13/12/1827

Em outra mensagem, o imperador ilustra bem como se dava o flerte, não apenas entre ele e sua amante, mas na sociedade em geral, pela “linguagem das flores”. Por esse código, que os viajantes ingleses já haviam notado na Turquia e que os franceses acabaram por disseminar pela Europa, era possível conversar sem palavras e a distância. Não só cada flor tinha um significado como o modo de ofertar e receber eram carregados de simbolismo.

“(…) Remeto-te como em sinal de paz esses lírios brancos (…). Eu muito estimarei que eles sejam por ti recebidos, conhecendo ao mesmo tempo que o amor por ti é que me compele a oferecer-tos. (…) Peço-te que pelo menos um dos lírios goze do teu calor no teatro.” 21/6/1829

No mesmo ano, d. Pedro baniria Domitila para São Paulo, grávida. Era necessário para demonstrar publicamente sua regeneração moral. A dificuldade dos emissários brasileiros em conseguir uma nova esposa para d. Pedro, após a morte da imperatriz Leopoldina, calou fundo no monarca, que, ao se ver casado com uma jovem princesa alemã de 16 anos, tomou todas as providências cabíveis para se livrar da amante.

De volta à provinciana São Paulo, a marquesa manteve os hábitos da corte. Adorava saraus e não perdia representações teatrais. Altiva, não se deixou abater quando um boato deu conta que uma trupe de atores amadores, formada por estudantes da Faculdade de Direito, iria lhe fazer uma sátira. Compareceu ao teatro, e a sátira não se realizou.

Domitila faleceu em São Paulo em 3 de novembro de 1867, perto de completar 70 anos. Deixou vasta descendência e uma fama tão grande e com tantos matizes que só poderia ter sido produzida por uma figura ímpar.

Monteiro Lobato, em maio de 1923, durante os festejos do centenário da independência, confidenciava ao seu amigo Godofredo Rangel:

“Estou com ideia dum romance histórico, Titila. Tenho de estudar o primeiro império para romancear historicamente a famosa marquesa do Pedro I. (…) A Titila titilava. Prendeu aquele garanhão durante oito anos”.

Desse romance projetado por Lobato não houve mais notícia até as pesquisas realizadas para a biografia Domitila, a Verdadeira História da Marquesa de Santos. O jornal paulista Folha da Noite de 21/11/1923 dá uma pista:

“Uma peça de Monteiro Lobato – A Oduvaldo Viana, diretor da Companhia Abigail Maia, o ilustre escritor Monteiro Lobato acaba de fazer a entrega dos originais da peça de época ‘A Marquesa de Santos’, que vai ser posta em cena com rigorosa montagem, no início da temporada.”

Infelizmente, essa peça nunca foi levada aos palcos. Não existe nenhuma outra notícia a respeito dela, e até o momento, nos acervos de Lobato e de Viana, nada sobre o assunto surgiu. Teria o pai da Emília “plantado” a notícia para ver a reação do público? O interessante sobre essa história é que Oduvaldo, mais tarde, representaria diversas vezes d. Pedro I, tanto em A Marquesa de Santos, de Viriato Correa, quanto em O Imperador Galante de Raimundo Magalhães Jr.

Em 4 de março de 1938, estreava em São Paulo a peça de Viriato Correa, que incluía três composições do maestro Heitor Villa Lobos: “Gavota-Choro”, “Valsinha Brasileira” e o famoso “Lundu da Marquesa de Santos”, que, sendo originariamente cantado por d. Pedro, hoje faz parte do repertório de sopranos. Domitila era representada pela atriz Dulcina de Moraes. Apresentada no Rio de Janeiro em 30 de março do mesmo ano, a peça contou com os atores Zilka Salaberry, como a imperatriz Leopoldina, Dercy Gonçalves, como uma aia na versão carioca, e Manoel Pêra, pai da atriz Marília Pêra, como Chalaça.

Montada com subsídio governamental, encaixava-se na política do Estado Novo de exaltação dos heróis nacionais. Domitila foi usada para, literalmente, endeusar d. Pedro I, como bem ilustra uma de suas falas ao relembrar o 7 de setembro: “[O imperador] não parecia criatura igual às outras criaturas. O sol caía-lhe em cima inteirinho e ele estava todo coberto de sol, todo dourado como figura sobrenatural. Como um deus!”. O público pôde, nessa peça, conhecer uma marquesa amorosa, ansiosa por atenção exclusiva, não poder ou negociatas. Titília, pronta a realizar o maior dos sacrifícios, resolve abandonar o imperador para salvar a honra do Brasil no exterior. O amor dela serviu de mote para apresentarem o herói da independência pronto para o consumo popular, em grandioso cenário e riquíssimo guarda-roupa.

Durante as comemorações do IV Centenário da Cidade de São Paulo, em 1954, foi posta em cartaz a peça O Imperador Galante, que havia estreado um ano antes no Rio de Janeiro. Escrita na década de 1940, foi levada ao palco com Oduvaldo e Dulcina novamente nos papéis principais. O ator Carlos Zara estreou profissionalmente nessa montagem. O Imperador Galante não ficou atrás do “tom” da obra de Viriato Correa. Segundo o crítico Décio de Almeida Prado, ela conseguira cumprir a missão de “encher o coração do público de ardor patriótico ou sentimental e os seus olhos de assombro e encantamento pela riqueza e pompa do espetáculo, obrigatório em tais evocações do passado”. (17/3/1954)

Sete anos depois, em 1961, desembarcavam no Rio de Janeiro os produtores norte-americanos Deed Meyer e Stuart Bishop, que pretendiam levar para a Broadway essa história de amor com o nome The Petticoat Prince. Bishop havia recebido de presente da cantora Barbara Ashley o livro Amazon Throne, de Bertita Harding, publicado no Brasil sob o título de O Trono do Amazonas: a história dos Braganças no Brasil, uma grande colagem de fofocas e mexericos históricos. Entretanto esse folhetim, que por pouco não virou outra peça da Broadway musicada por Ary Barroso em 1941, despertou o interesse dos produtores. Eles vieram fotografar e tirar as medidas do Palacete do Caminho Novo, antiga residência de Domitila no Rio de Janeiro, para convertê-lo em luxuoso cenário, que nunca saiu do papel.

Não foram apenas os norte-americanos que projetaram uma peça sobre Domitila que não estreou. Diversas outras Marquesas de Santos tiveram a mesma sina. Luís Edmundo publicou a sua em 1924. Premiada pela Academia Brasileira de Letras, nunca foi montada. A obra de Luiz Carlos Barbosa Lessa teve o mesmo fim. Escrita para as comemorações dos 150 anos da Independência em 1972, também não foi levada à cena. Ainda temos o caso ocorrido este ano, quando, a um mês da estreia, Lírios Brancos para a Marquesa, de Beth Araújo, foi subitamente cancelada pelo fechamento do Museu do Primeiro Reinado. O prédio, antigo palacete da marquesa de Santos, onde a peça seria encenada, será ocupado pelo Museu da Moda.

Durante as comemorações do sesquicentenário da independência, um d. Pedro I mais humano, e ainda apaixonado pela sua Titília, surgiu na peça Um Grito de Liberdade, de Sérgio Viotti. A montagem tinha Antônio Fagundes como d. Pedro, Ana Maria Dias como a imperatriz Leopoldina e Nize Silva interpretando a marquesa de Santos. Estreada em São Paulo em 24 de outubro de 1972, contava também com os autores Ruthineia de Moraes, Elias Gleizer, Zezé Mota, Tony Ramos e Marcelo Picchi. O tom político da peça dialoga com o Brasil da época da ditadura. Segundo o diretor Osmar Rodrigues Cruz: “Tentamos mostrar um homem comum e falível, suas relações humanas e as implicações políticas resultantes do caráter autoritário e da sede de poder deste imperador que preferia dissolver a Assembleia Constituinte a ter que admitir suas falhas e o cunho ditatorial de seu governo”.

Em 2000 colocaram Titília para cantar seu amor na ópera de câmara “Domitila”. Estreada no Rio de Janeiro, com música e libreto do compositor carioca João Guilherme Ripper, uma soprano, acompanhada por clarineta, violoncelo e piano, cantou as cartas recebidas de seu imperial amante. Contemplada com o Prêmio Circuito Funarte de Música Clássica em 2010, foi reencenada em Porto Alegre, Joinville, Cuiabá, Campo Grande e Dourados. No papel de Domitila a Soprano Maíra Lautert. A direção musical ficou a cargo de Priscila Bomfim e a direção cênica de Luiz Kleber Queiroz.

Uma das últimas peças a entrar em cartaz tendo Domitila como personagem foi escrita por Ênio Gonçalves. Pedro e Domitila estreou em 1984, tendo o autor como d. Pedro I e Taya Perez como a marquesa. A direção ficou a cargo de Mario Masetti. Com modificações finais no texto e o acréscimo de um casal de escravos que auxiliam na narrativa, teve sua última montagem profissional, dirigida pelo autor, em 2008.

Será que, com esse currículo, alguma sociedade artística teria coragem de expulsar Titília de seu teatro nos dias de hoje?

Paulo Rezzutti

Texto publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais – SBAT em dezembro de 2011

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