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Banda Lítera de Porto Alegre lança o álbum “Caso Real”, inspirado no conturbado caso de amor entre Dom Pedro I e a Marquesa de Santos

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Em seu segundo disco, a Lítera navega além-mar numa história de amor que transcende os tempos.

Uma série de cartas do Imperador Dom Pedro I, fundador e primeiro soberano do Império do Brasil, para a Marquesa de Santos, a insaciável “Domitila”, as quais, até pouco tempo atrás, eram dadas como desaparecidas são encontradas num obscuro museu nos Estados Unidos. Escritas entre 1823 e 1827, as missivas revelam aspectos da vida sexual e política na corte brasileira. Este é o mote poético e, mais do que isso, o caráter “epistolar” que a Lítera verteu na vibrante coleção de canções que estão presente no álbum Caso Real, o segundo da banda porto-alegrense. O disco sucede Um Pouco de Cada Dia, o primeiro da Lítera, lançado em 2009.

A fonte de inspiração para o novo rebento (disponível em formato virtual no site www.litera.mus.br), que deverá ganhar lançamento físico no início de 2016, foi o livro Titília e o Demonão – Cartas Inéditas de Dom Pedro I à Marquesa de Santos, do escritor Paulo Rezzutti. Com produção do “mago” dos estúdios Marcelo Fruet (Dingo Bells, Pública), as 12 faixas de Caso Real são francamente inspiradas nesse insuspeitado caso de amor. Oito delas – “Mergulho”, “Bercy”, “Domitila”, “Sofá”, “Amantes”, “Mais ainda”, “Miúda” e “Vai passar” –, já conhecidas do público, foram editadas nos EPs A Marquesa (2013) e O Imperador (2014). O álbum traz quatro temas inéditos: “Bem feito”, “Vai me convencer”, “Fico” e “Ouvidor” (saiba mais sobre cada uma das canções no faixa-a-faixa de André Neto – em anexo).

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Musicalmente, as influências da Lítera, impressas neste disco, são tão diversas quanto atuais e, por vezes, extemporâneas – vão, entre outras sonoridades e estilos, de The Clash aos Paralamas do Sucesso, de The Ours a The Killers e de The Cure aos Novos Baianos. Ou seja, passeiam entre o passado e a modernidade do rock e do pop universais com personalidade grande desenvoltura. A arte da capa, que sintetiza o conceito de “amor impossível” retratado nas ideias das canções gravadas em Caso Real, leva a assinatura da ilustradora Isadora Brandelli.
O álbum, conceitua o compositor André Neto, vocalista e também guitarrista da Lítera, é uma obra temática, espécie de Romeu & Julieta [obra de William Shakespeare] brasileiros. Que, da primeira à última faixa, por meio de suas canções conta as conturbadas fases – ora felizes, ora amargas; ora de amor, ora de desamor – do relacionamento entre Dom Pedro e Domitila. Mais do que falar,  questionar ou trazer uma reflexão, ressalta André, a banda quis provocar seus ouvintes tirando-os de sua “zona de conforto dos sentimentos”: “Que tipo de amor é impossível? Ou, ainda, o que, afinal, é um amor impossível?”, deixam no ar.

Capa-Caso-RealO escritor Paulo Rezzutti, responsável por essa descoberta sem paralelos sobre a “historiografia do amor” pátrio, diz que Porto Alegre, graças ao trabalho interpretativo da Lítera, foi a cidade que, artisticamente, melhor reverberou o resgate histórico que, desde 2010, ele vem realizando. Com seu som incrível e letras deliciosas, a Lítera, considera, conseguiu dar um novo ar musical a essa envolvente história passada no Primeiro Reinado. São canções que, observa o autor,  trazem para o contemporâneo as “ridículas delícias da paixão” com todo o colorido de suas dores e sabores. Para Rezutti, um caso de amor é um microcosmo que se repete e repetirá pela eternidade, com altos e baixos, como brincar de gangorra. “Não importa se os amantes são de nosso século, do passado, do retrasado ou do tempo das cavernas, as dúvidas, as aflições e os gozos são os mesmos, e isso a Lítera conseguiu demonstrar com muita competência em seu novo disco”. Um caso, literalmente, de amor. Um  caso real. Em todos os sentidos.

Sobre a Lítera
Site: www.litera.mus.br
Facebook: www.facebook.com/literarock
Instagram: www.instagram.com/literarock
Youtube: https://www.youtube.com/user/literavideos
Soundcloud: www.soundcloud.com/literarock/sets

Videoclipes
“Domitila”: www.youtube.com/watch?v=lpg5KVvVBcw
“Bercy”: www.youtube.com/watch?v=KS1AOviW6f0

A antiga São Paulo da Marquesa de Santos

Dia 12 de outubro, sábado – aniversário de D. Pedro I -, estarei com a equipe do São Paulo Antiga fazendo o passeio “A antiga São Paulo da Marquesa de Santos”. Vagas limitadas. O cadastro para participar é feito em http://www.saopauloantiga.com.br/turismo/

Os 215 anos da Marquesa de Santos

Há exatos 215 anos, nascia Domitila de Castro do Canto e Melo, a famosa Marquesa de Santos. Era a sétima filha do tenente-coronel João de Castro do Canto e Melo, militar de distinta família açoriana, e de Escolástica Bonifácia de Oliveira Toledo Ribas, cuja descendência ligava Domitila aos primeiros povoadores paulistas e a um irmão de Pedro Álvares Cabral.

Quadro de Domitila no Museu Paulista/USP

Quadro de Domitila no Museu Paulista/USP

Apesar do seu famoso caso com o imperador d. Pedro I, sua mudança para o Rio de Janeiro e suas visitas ao interior, onde possuía diversas fazendas, a maior parte de sua existência transcorreu praticamente dentro do que conhecemos hoje como o Centro Velho, ou Antigo, da cidade de São Paulo.

Na época do nascimento de Domitila, São Paulo modorrava pacificamente no alto da Serra do Mar. A antiga vila que abrigara a “raça de gigantes”, os bandeirantes, havia se transformado em uma cidade caipira que sobrevivia em grande parte à custa dos impostos dos gêneros que transitavam pelo seu entroncamento em sentido a Rio, Santos, Minas e sul do Brasil. O dinheiro e a prosperidade que viria com o “ouro verde”, o café, estavam ainda distantes.

A cidade na época, aliás, o que era considerado a parte urbana de São Paulo, confinado entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú, tinha pouco mais de cinco mil habitantes.

São Paulo, nessa ocasião, além de trilhas, travessas e becos, contava com poucas ruas mal calçadas por pedras brutas, como Direita, São Bento, Carmo, Quitanda, Cadeia, das Casinhas, Boa Vista, São Gonçalo, Pelourinho, Rosário e da Freira. O calçamento bruto acabou adestrando a mulher paulista a um andar faceiro, registrado pelos viajantes. Na verdade, o passo leve e seguro era para evitar que torcessem os delicados tornozelos nas pedras…

Foi nesse cenário que Domitila viveu até se casar, em 13 de janeiro de 1812, duas semanas após completar 15 anos, com o alferes mineiro Felício Pinto Coelho de Mendonça. Felício era membro de uma família de ricos proprietários de lavras de ouro em Vila Rica, para onde se mudou com a esposa. Domitila viveu em Minas até que o marido violento, dado a jogos e bebedeiras, começasse a espancá-la. Então retornou para a casa paterna.

Após uma malfadada tentativa de reconciliação, Felício esfaqueou Domitila na bica de Santa Luzia, próximo do local onde hoje se ergue a capela de Santa Luzia e do Menino Jesus de Praga, na Rua Tabatinguera.

Fotografia de Domitila já idosa feita por Militão Augusto de Azevedo

Fotografia de Domitila já idosa feita por Militão Augusto de Azevedo

Dois meses Domitila passou entre a vida e a morte, sem poder sair da cama, enquanto o marido, preso, era enviado à sede de seu regimento em Santos. Dava-se aí o início da briga pela guarda dos filhos que só seria resolvida com a separação do casal em maio de 1824, já com ela como amante de d. Pedro I e morando no Rio de Janeiro.

Durante sete anos, de 1822 a 1829, viveria o maior e mais longo escândalo sexual do Brasil. Amante de d. Pedro I, este a fará Dama Camarista da Imperatriz, cargo que a colocava acima das demais damas do paço e na escala dos semanários, ou seja, ao menos uma vez por mês moraria junto com os imperadores.

D. Pedro, jovem e no auge do poder, pouco fez para esconder o caso, o que lhe dificultaria muito na Europa a busca de uma nova esposa após a morte de d. Leopoldina, em dezembro de 1826. Jornais na Europa chegariam até a culpar d. Pedro e Domitila da morte da imperatriz. O nome da Marquesa de Santos foi constante nos relatórios dos diplomatas estrangeiros no Rio de Janeiro. Sua proximidade com o imperador atraía para si desde comerciantes estrangeiros querendo a liberação de uma carga no porto até o enviado de Sua Majestade Britânica, Sir Charles Stuart, encarregado das negociações do reconhecimento da independência do Brasil com Portugal.

Após quase um ano de negociações, finalmente surgiu uma noiva, a princesa Amélia de Leuchtenberg, neta do rei da Baviera e da ex-imperatriz dos franceses, Josefina, esposa de Napoleão. Ela aceitou a proposta de d. Pedro, e assim Domitila foi substituída na cama e no coração do monarca por uma garota de 17 anos, que podia ser filha da Marquesa.

Com a perspectiva do novo casamento, d. Pedro cassou sua titulação de Dama Camarista e expulsou-a, juntamente com sua família, do Rio de Janeiro. Inicialmente pretendeu exilá-la na Europa, mas por fim permitiu que se mudasse novamente para São Paulo.

Eis novamente Domitila de volta à sua cidade natal. Como tudo deve ter parecido pequeno, feio, acanhado. No Rio de Janeiro, recebia ministros estrangeiros e suas esposas, vestia-se nas melhores modistas francesas da Rua do Ouvidor, via de perto a iluminação pública do Rio de Janeiro, que aqui só apareceria anos depois de seu retorno. Também no Rio tomara gosto pelas comédias francesas que se habituara assistir no Imperial Teatro São Pedro de Alcântara, onde atualmente se ergue o Teatro João Caetano, no centro. Aqui em São Paulo o teatro onde vira a aclamação de d. Pedro em 7 de setembro de 1822 lhe pareceria agora terrivelmente pobre.

Túmulo da Marquesa de Santos no Cemitério da Consolação, São Paulo

Túmulo da Marquesa de Santos no Cemitério da Consolação, São Paulo

Mas era São Paulo que ela tinha e daqui não a podiam expulsar; parte da diversão mais rica, ela própria resolveu prover. Não existia ninguém na cidade que se atrevia a concorrer com ela nos festejos do 7 de setembro e do 11 de agosto, dia da criação dos cursos jurídicos no Brasil. Seria uma segunda mãe dos estudantes de Direito da Academia instalada no antigo convento franciscano, cuidaria dos doentes e os receberia em seus saraus, como bem provam as cartas do jovem Álvares de Azevedo para sua mãe no Rio.

De 1830 até o final de sua vida, em 1867, casaria novamente – dessa vez com o brigadeiro Tobias de Aguiar, duas vezes presidente da Província de São Paulo –, teria diversos filhos, gerenciaria seus escravos, que alugava para a realização de melhoramentos da cidade, cuidaria de suas fazendas, de seus parentes e de seu marido, chegando até a ser presa junto com ele por conta da Revolução Liberal.

Uma face de Domitila pouco estudada é a sua benemerência. Ao longo da vida, tanto no Rio de Janeiro, como, principalmente, em São Paulo, dedicou-se a diversas causas, desde ajudar financeiramente o governo durante a Guerra da Cisplatina até emprestar uma de suas fazendas para servir de abrigo aos soldados que partiam para a Guerra do Paraguai, presenteados por ela com dinheiro antes de irem para a frente. Ela também chegou a abrir enfermarias para os pobres, ajudou financeiramente a Santa Casa de Misericórdia a conseguir sua primeira sede própria e doou dinheiro para a construção da primeira capela do cemitério da Consolação, próximo da qual ainda hoje se encontra enterrada.

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A Marquesa de Santos e o Teatro Brasileiro – Uma palha da biografia

Em 1824, o imperador D. Pedro I decretou o fechamento do Teatrinho Constitucional São Pedro, no Rio de Janeiro. Os mexericos da época davam o motivo: os proprietários teriam impedido que uma certa senhora entrasse. A história não guardou o nome de quem a barrou, mas de Domitila de Castro, a futura marquesa de Santos, todos já ouviram falar. E esta nunca deixaria o teatro brasileiro.

Domitila entrou para o imaginário popular devido ao seu relacionamento com d. Pedro. Conheceram-se em São Paulo, em agosto de 1822, pouco antes de o jovem dissolver os laços políticos que nos uniam a Portugal. Ela, divorciada do primeiro marido; ele, casado há cinco anos com a arquiduquesa Leopoldina.

A crônica da época nos revela que, na noite de 7 de setembro, após o evento no Ipiranga, a cidade vestiu-se de gala e foi saudar d. Pedro no Teatro da Ópera, no Pátio do Colégio. Houve a apresentação da peça O Convidado de Pedra, de Tirso de Molina, sobre o célebre amante Don Juan, imortalizado por Mozart na ópera “Don Giovanni”. Nela, Leporello, servo do sedutor, conta que seu mestre tinha, só na Espanha, “mille i tre” amantes. D. Pedro, que assinava suas cartas para Domitila como “Demonão”, ficaria tão famoso quanto Don Juan pela quantidade de amantes, reais e atribuídas. Segundo alguns relatos, ele não ficou até o final da peça. Teria saído mais cedo para se encontrar com sua Titília, com quem tinha iniciado um relacionamento em 29 de agosto de 1822.

Quando Domitila foi morar no Rio de Janeiro, em 1823, a convite do já imperador d. Pedro I, o teatro ainda continuaria sendo, por muito tempo, palco de encontros entre ambos.

O comerciante inglês John Armitage deixou registrado o incidente ocorrido em setembro de 1824, quando Domitila foi impedida de entrar no Teatrinho Constitucional sob a alegação de que, por ser uma sociedade particular, somente era permitido o comparecimento de estranhos com convites especiais, que ela não possuía. Ao saber do incidente, o imperador, presente ao evento, retirou-se. Em 22 desse mês, d. Pedro, amparado pela lei que punia sociedades secretas e usando do pretexto de que o grupo teatral não havia submetido seus estatutos ao governo, ordenou que fechassem o teatro. Os artistas foram despejados, e seus trajes e cenários alimentaram uma enorme fogueira. Curioso com a cena, Armitage descobriu que o incidente devia-se à “Nova Castro”, uma referência zombeteira ao romance entre d. Pedro I de Portugal e Inês de Castro, que foi rainha depois de morta. Nome também de uma peça então em moda.

Durante os sete anos em que o relacionamento se desenvolveu, cheio de altos e baixos, ataques de ciúmes e juras de amor, o Imperial Teatro São Pedro de Alcântara, onde hoje se ergue o teatro João Caetano, no centro do Rio de Janeiro, foi um dos cenários onde era possível encontrar socialmente Domitila e d. Pedro sob o mesmo teto. Ele no camarote imperial, e ela, em outro presenteado por ele.

As cartas trocadas entre d. Pedro e Domitila mostram, por exemplo, que ambos eram fãs de peças:

“Como tu tens estado sem ires (e por mui justo motivo) ao Teatro, e tendo nós muito apetite de assistirmos à Comédia Francesa, e podendo-o não ir eu hoje ao Teatro, e ir depois de amanhã parecer combinação entre nós (…)” 13/12/1827

Em outra mensagem, o imperador ilustra bem como se dava o flerte, não apenas entre ele e sua amante, mas na sociedade em geral, pela “linguagem das flores”. Por esse código, que os viajantes ingleses já haviam notado na Turquia e que os franceses acabaram por disseminar pela Europa, era possível conversar sem palavras e a distância. Não só cada flor tinha um significado como o modo de ofertar e receber eram carregados de simbolismo.

“(…) Remeto-te como em sinal de paz esses lírios brancos (…). Eu muito estimarei que eles sejam por ti recebidos, conhecendo ao mesmo tempo que o amor por ti é que me compele a oferecer-tos. (…) Peço-te que pelo menos um dos lírios goze do teu calor no teatro.” 21/6/1829

No mesmo ano, d. Pedro baniria Domitila para São Paulo, grávida. Era necessário para demonstrar publicamente sua regeneração moral. A dificuldade dos emissários brasileiros em conseguir uma nova esposa para d. Pedro, após a morte da imperatriz Leopoldina, calou fundo no monarca, que, ao se ver casado com uma jovem princesa alemã de 16 anos, tomou todas as providências cabíveis para se livrar da amante.

De volta à provinciana São Paulo, a marquesa manteve os hábitos da corte. Adorava saraus e não perdia representações teatrais. Altiva, não se deixou abater quando um boato deu conta que uma trupe de atores amadores, formada por estudantes da Faculdade de Direito, iria lhe fazer uma sátira. Compareceu ao teatro, e a sátira não se realizou.

Domitila faleceu em São Paulo em 3 de novembro de 1867, perto de completar 70 anos. Deixou vasta descendência e uma fama tão grande e com tantos matizes que só poderia ter sido produzida por uma figura ímpar.

Monteiro Lobato, em maio de 1923, durante os festejos do centenário da independência, confidenciava ao seu amigo Godofredo Rangel:

“Estou com ideia dum romance histórico, Titila. Tenho de estudar o primeiro império para romancear historicamente a famosa marquesa do Pedro I. (…) A Titila titilava. Prendeu aquele garanhão durante oito anos”.

Desse romance projetado por Lobato não houve mais notícia até as pesquisas realizadas para a biografia Domitila, a Verdadeira História da Marquesa de Santos. O jornal paulista Folha da Noite de 21/11/1923 dá uma pista:

“Uma peça de Monteiro Lobato – A Oduvaldo Viana, diretor da Companhia Abigail Maia, o ilustre escritor Monteiro Lobato acaba de fazer a entrega dos originais da peça de época ‘A Marquesa de Santos’, que vai ser posta em cena com rigorosa montagem, no início da temporada.”

Infelizmente, essa peça nunca foi levada aos palcos. Não existe nenhuma outra notícia a respeito dela, e até o momento, nos acervos de Lobato e de Viana, nada sobre o assunto surgiu. Teria o pai da Emília “plantado” a notícia para ver a reação do público? O interessante sobre essa história é que Oduvaldo, mais tarde, representaria diversas vezes d. Pedro I, tanto em A Marquesa de Santos, de Viriato Correa, quanto em O Imperador Galante de Raimundo Magalhães Jr.

Em 4 de março de 1938, estreava em São Paulo a peça de Viriato Correa, que incluía três composições do maestro Heitor Villa Lobos: “Gavota-Choro”, “Valsinha Brasileira” e o famoso “Lundu da Marquesa de Santos”, que, sendo originariamente cantado por d. Pedro, hoje faz parte do repertório de sopranos. Domitila era representada pela atriz Dulcina de Moraes. Apresentada no Rio de Janeiro em 30 de março do mesmo ano, a peça contou com os atores Zilka Salaberry, como a imperatriz Leopoldina, Dercy Gonçalves, como uma aia na versão carioca, e Manoel Pêra, pai da atriz Marília Pêra, como Chalaça.

Montada com subsídio governamental, encaixava-se na política do Estado Novo de exaltação dos heróis nacionais. Domitila foi usada para, literalmente, endeusar d. Pedro I, como bem ilustra uma de suas falas ao relembrar o 7 de setembro: “[O imperador] não parecia criatura igual às outras criaturas. O sol caía-lhe em cima inteirinho e ele estava todo coberto de sol, todo dourado como figura sobrenatural. Como um deus!”. O público pôde, nessa peça, conhecer uma marquesa amorosa, ansiosa por atenção exclusiva, não poder ou negociatas. Titília, pronta a realizar o maior dos sacrifícios, resolve abandonar o imperador para salvar a honra do Brasil no exterior. O amor dela serviu de mote para apresentarem o herói da independência pronto para o consumo popular, em grandioso cenário e riquíssimo guarda-roupa.

Durante as comemorações do IV Centenário da Cidade de São Paulo, em 1954, foi posta em cartaz a peça O Imperador Galante, que havia estreado um ano antes no Rio de Janeiro. Escrita na década de 1940, foi levada ao palco com Oduvaldo e Dulcina novamente nos papéis principais. O ator Carlos Zara estreou profissionalmente nessa montagem. O Imperador Galante não ficou atrás do “tom” da obra de Viriato Correa. Segundo o crítico Décio de Almeida Prado, ela conseguira cumprir a missão de “encher o coração do público de ardor patriótico ou sentimental e os seus olhos de assombro e encantamento pela riqueza e pompa do espetáculo, obrigatório em tais evocações do passado”. (17/3/1954)

Sete anos depois, em 1961, desembarcavam no Rio de Janeiro os produtores norte-americanos Deed Meyer e Stuart Bishop, que pretendiam levar para a Broadway essa história de amor com o nome The Petticoat Prince. Bishop havia recebido de presente da cantora Barbara Ashley o livro Amazon Throne, de Bertita Harding, publicado no Brasil sob o título de O Trono do Amazonas: a história dos Braganças no Brasil, uma grande colagem de fofocas e mexericos históricos. Entretanto esse folhetim, que por pouco não virou outra peça da Broadway musicada por Ary Barroso em 1941, despertou o interesse dos produtores. Eles vieram fotografar e tirar as medidas do Palacete do Caminho Novo, antiga residência de Domitila no Rio de Janeiro, para convertê-lo em luxuoso cenário, que nunca saiu do papel.

Não foram apenas os norte-americanos que projetaram uma peça sobre Domitila que não estreou. Diversas outras Marquesas de Santos tiveram a mesma sina. Luís Edmundo publicou a sua em 1924. Premiada pela Academia Brasileira de Letras, nunca foi montada. A obra de Luiz Carlos Barbosa Lessa teve o mesmo fim. Escrita para as comemorações dos 150 anos da Independência em 1972, também não foi levada à cena. Ainda temos o caso ocorrido este ano, quando, a um mês da estreia, Lírios Brancos para a Marquesa, de Beth Araújo, foi subitamente cancelada pelo fechamento do Museu do Primeiro Reinado. O prédio, antigo palacete da marquesa de Santos, onde a peça seria encenada, será ocupado pelo Museu da Moda.

Durante as comemorações do sesquicentenário da independência, um d. Pedro I mais humano, e ainda apaixonado pela sua Titília, surgiu na peça Um Grito de Liberdade, de Sérgio Viotti. A montagem tinha Antônio Fagundes como d. Pedro, Ana Maria Dias como a imperatriz Leopoldina e Nize Silva interpretando a marquesa de Santos. Estreada em São Paulo em 24 de outubro de 1972, contava também com os autores Ruthineia de Moraes, Elias Gleizer, Zezé Mota, Tony Ramos e Marcelo Picchi. O tom político da peça dialoga com o Brasil da época da ditadura. Segundo o diretor Osmar Rodrigues Cruz: “Tentamos mostrar um homem comum e falível, suas relações humanas e as implicações políticas resultantes do caráter autoritário e da sede de poder deste imperador que preferia dissolver a Assembleia Constituinte a ter que admitir suas falhas e o cunho ditatorial de seu governo”.

Em 2000 colocaram Titília para cantar seu amor na ópera de câmara “Domitila”. Estreada no Rio de Janeiro, com música e libreto do compositor carioca João Guilherme Ripper, uma soprano, acompanhada por clarineta, violoncelo e piano, cantou as cartas recebidas de seu imperial amante. Contemplada com o Prêmio Circuito Funarte de Música Clássica em 2010, foi reencenada em Porto Alegre, Joinville, Cuiabá, Campo Grande e Dourados. No papel de Domitila a Soprano Maíra Lautert. A direção musical ficou a cargo de Priscila Bomfim e a direção cênica de Luiz Kleber Queiroz.

Uma das últimas peças a entrar em cartaz tendo Domitila como personagem foi escrita por Ênio Gonçalves. Pedro e Domitila estreou em 1984, tendo o autor como d. Pedro I e Taya Perez como a marquesa. A direção ficou a cargo de Mario Masetti. Com modificações finais no texto e o acréscimo de um casal de escravos que auxiliam na narrativa, teve sua última montagem profissional, dirigida pelo autor, em 2008.

Será que, com esse currículo, alguma sociedade artística teria coragem de expulsar Titília de seu teatro nos dias de hoje?

Paulo Rezzutti

Texto publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais – SBAT em dezembro de 2011

O retorno da velha senhora, ou a volta da Marquesa de Santos

Foi inaugurado no último dia 19, após três anos de restauro, o Solar da Marquesa de Santos, no centro de São Paulo, bem ao lado do Pátio do Colégio. Também foram reabertos os recém-restaurados Beco do Pinto e Casa Número 1, atual Museu da Imagem da Cidade de São Paulo.

Casa nº 1, Beco do Pinto e Solar da Marquesa de Santos

Da esquerda para a direita: Casa nº 1, que abriga o Museu da Imagem, o pórtico do Beco do Pinto e Solar da Marquesa de Santos. Fotomontagem do Arquiteto Victor Hugo Mori

O solar é considerado o último exemplar residencial urbano do século XVIII da cidade. Infelizmente somente as paredes de taipa de pilão e de mão, parte da fachada e a disposição de algumas salas do andar superior mantêm resquícios de como era o local na época em que a marquesa de Santos lá morou. As sucessivas reformas por que o Retrato da Marquesa de Santos que veio do Rio de Janeiro para a mostraimóvel passou descaracterizaram profundamente sua disposição interior. Após a morte do filho mais velho de Domitila, Felício, que herdou o imóvel, o solar foi leiloado e adquirido pela Cúria Metropolitana. A residência do bispo de São Paulo lá funcionou de 1880 até 1909 e existem relatos de que a capela, que ficava no andar superior, foi utilizada para casamentos e batizados. Depois de 1909 o local foi sede da The San Paulo Gas Company Ltda. Após a encampação dessa companhia, que passou a chamar-se Comgás, o solar passou para a Secretaria de Cultura do Município de São Paulo.

Hoje, a parte de baixo, que originariamente servia para os trabalhos domésticos, estocaPrato pertencente a Marquesa de Santosgem de gêneros alimentícios etc., abriga uma exposição que nos leva ao tempo de uma São Paulo mais calma, onde o cantar do carro de boi era uma constante. Os painéis nos conduzem a um passeio através da evolução histórica do entorno, física e psicologicamente.  Uma bela e bem conservada cadeirinha de arruar mostra como as damas, do calibre da mais ilustre moradora da casa, eram transportadas por seus escravos pelas ruas da velha São Paulo.

Em um canto, próximo da cadeirinha, encontram-se alguns achados arqueológicos. Se pertenciam todos a Domitila, ou à família, é difícil saber. O beco, ao lado do imóvel, pode ser considerado como o mais antigo caminho paulista. Durante décadas foi usado por escravos que iam jogar o lixo de seus senhores no rio Tamanduateí. As diversas disputas tendo por motivo a divisa entre o beco e os lotes confrontantes nos mostram o hábito de escravos preguiçosos que descarregavam seus monturos no quintal do brigadeiro Joaquim José Pinto de Morais Leme, antigo proprietário do solar e que acabou dando seu nome ao beco.

A parte da exposição que mais tem atiçado a curiosidade está no andar superior do imóvel. Antes de subir, vale a pena a leitura de um grande painel onde a vida de Domitila é contada cronologicamente.

Ao vencermos o lance que nos leva ao segundo pavimento, um pequeno aposento do lado esquerdo abriga uma exposição sobre as cartas trocadas entre a marquesa de Santos e seu amante, d. Pedro I. Além de algumas fotos de cartas originais, existem outras transcritas em letras brancas sobre acrílico transparente. E aí temos um problema para quem, como eu, sofre com dificuldades de visão (corrigido, meus olhos e de vários outros agradecem. Agora só falta correções ortográfivas em alguns painéis, como o caso de um dos filhos da Domitila ter morrido “bebe”, cirrose talvez?) . O fundo das vitrines é amarelo e, dependendo da luz incidente, torna-se um suplício ler o que está escrito. O mesmo ocorre com diversas outras placas explicativas ao longo da exposição.

Fotos da Marquesa de Santos idosaA mostra “Marquesa de Santos: uma mulher, um tempo, um lugar”, apesar de se focar principalmente na vida de Domitila após seu retorno a São Paulo em 1829, não poderia deixar de lado, mesmo que com uma referência pequena, como ocorreu, o caso dela com o imperador. Afinal, se Domitila era filha de família ilustre, os processo envolvendo seu pai por falta de pagamento de aluguéis, antes de ela se envolver com d. Pedro I, mostra claramente que se ascendJogo de cadeiras e mesa para chá pertencentes a marquesaentes ilustres existiam em seus costados, dinheiro não.

O caso com d. Pedro abriu-lhe não somente livre acesso a um nível social de que não dispunha em São Paulo como ao enriquecimento obtido ao pé do trono. Domitila, que partira para a corte sem posses, retornaria para São Paulo com uma fortuna em joias, títulos e 52 escravos. Nesse período, o preço médio de um escravo era de 170 mil réis; a soma geral deles daria algo em torno de 9 contos. Para se ter uma ideia do que isso representava em valor da época, em 1834 a marquesa pagou pelo solar 11 contos de réis. Uma enorme casa muito bem localizada, próxima do centro de poder paulista. Tobias de Aguiar, seu novo amante e futuro marido, despachava no Palácio do Governo no Pátio do Colégio, quase em frente ao solar.

A próxima sala nos mostra a delicadeza das formas de Domitila. Não é outro o pensamento que surge ao observarmos o conjunto de mesa e cadeiras para chá.

Diversos retratos, inclusive um que não se parece nada com ela, vieram de várias instituições governamentais. Aliás, esse é um traço forte da exposição: nenhuma peça veio de colecionadores particulares. Nessa sala podemos observar o célebre retrato de Domitila jovem que pertence ao Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. Após conversa com o editor Pedro Correa do Lago, da Capivara, parece que em 5 de dezembro teremos outro “suspeito” de ter pintado esse retrato, mas isso é outro artigo para este blog. Essa sala, não só a mim, mas a diversas pessoas com quem conversei, causou bastante impacto. São três telas a óleo retratando Domitila, além de duas fotos, móveis, textos de biógrafos e notícias de jornais ligando-a a temas, como a maçonaria e a Guerra do Paraguai. Se nem as cartas de amor fizeram você se emocionar, duvido que passe incólume por essa overdose de rostos que, envelhecendo, o contemplam com uma pergunta: “O que está fazendo na minha casa?”.

A velha senhora voltou!

A marquesa de Santos foi expulsa novamente de sua casa no Rio de Janeiro no começo de 2011. O Museu do Primeiro Reinado foi desativado, e seu acervo, enviado para um museu em Niterói. Domitila retornou à Pauliceia, onde foi reentronada no seu velho solar da antiga Rua do Carmo em apoteose. Mal se andava no local no dia da inauguração. Todos queriam ver as cartas, o retrato da amante, sua cama, o faqueiro e ouvir histórias a respeito dela. Domitila retornou e veio para ficar.

2011 abriu e fechou tendo Domitila de volta ao noticiário nacional. Em março foi o lançamento do meu livro “Titília e o Demonão”, trazendo as cartas perdidas escritas por d. Pedro à sua amante; em novembro, a reabertura do solar e a exposição. Em 2012 haverá mais. Em março: o lançamento da obra “A Carne e o Sangue”, na qual a historiadora Mary Del Priore biografa o triângulo amoroso Leopoldina x Pedro x Domitila, e em setembro: “Domitila, a verdadeira história da marquesa de Santos”. Aguardem!

Museu da Cidade de São Paulo
Rua Roberto Simonsen, 136, Sé, centro, São Paulo, SP.
Tel.: (11)3105-6118. Ter. a dom.: 9h as 17h. Entrada grátis

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São Paulo em 1822, ou o que o Demonão viu além das curvas de Titília

Dom Pedro e sua comitiva entraram por São Paulo pelo melhor caminho que existia na época para apreciar devidamente a cidade. Depois de passar a colina da Penha, uma outra, mais ao longe, ostentava as torres de oito igrejas, dois conventos e três mosteiros. Passando pela Várzea do Carmo, um verdadeiro pântano onde hoje encontra-se o Parque D. Pedro II, Pedro I subiu a atual Rangel Pestana em direção ao então núcleo urbano da cidade, desenvolvido ao redor do Colégio dos Jesuitas e confinado entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí. O que Dom Pedro viu? Além das curvas de sua Titília?

Uma das primeiras coisas que D. Pedro deve ter notado foi a taipa paulista. Diferente dos nossos atuais arranha-céus, a morada paulista da época era feita de barro, socado com o pilão ou espalmado em treliças de madeira. As casas eram pintadas com uma espécie de cal, tirado da região da ladeira da Tabatinguera, o “Barro Branco” que dava o nome indígena ao local. Raras eram as casas de pedra ou tijolos. As construções eram, geralmente, de dois andares, dotadas de balcões onde os paulista “tomavam a fresca”, de manhã e de noite, onde assistiam às passagens das procissões, que não eram poucas. Aliás, o povo paulista era bastante devoto: a cidade inteira parava para rezar o terço à hora da Ave-Maria. Em 1822 existiam três oratórios públicos, um deles nos famosos “Quatro Cantos”, a antiga encruzilhada formada pela Rua Direita e a Rua de São Bento. Alguém que conhece a Pauliceia consegue imaginar parte da população ajoelhada lá, às 18h, em pleno horário atual de “rush”? Pois na época isso ocorria: a multidão tomava toda a calçada e parte da largura da rua, onde rezavam por 25 minutos. Atropelamentos não existiam, afinal, só havia um coche na cidade inteira em 1822, o do Bispo de São Paulo. Os outros meios de transporte eram as cadeirinhas, onde escravos faziam o papel de motor, e os milenares carros de boi com seu gemer característico.

O povo paulista abastecia-se de água em fontes, geralmente próximas das igrejas, que, pela época da vinda de D. Pedro I, deviam estar, como aconteceria por mais cinquenta anos até a implantação da Companhia Cantareira, secas.

Quando os paulistas não estavam rezando ou procurando água, poderiam ser encontrados matando tempo jogando em família a bisca, a douradinha e o “vive l´amour”; exercitando suas primeiras tacadas no bilhar do Antonio José Pereira dos Santos, na rua do Comércio; trocando dedos de prosa na Botica do Lúcio ou na do Mota, tio do futuro poeta Alvares de Azevedo, que tão bem deixou ilustrado em “Macário” o hábito paulista de comer couves cozidas. Falando em comida, não podia faltar na mesa do paulista a excelente mostarda que vinha da fazenda dos padres beneditinos em São Bernardo. Também o doce de figo, um dos maiores quitutes da cozinha paulista, estava sempre presente.

Jornal só existiria no próximo ano, em 1823. Escrito a mão, servia cinco assinantes. Era confeccionado pelo “Mestrinho”, apelido do genial Antonio Mariano de Azevedo Marques, que, com onze anos, lecionava latim na Sé.

Além das prosas, o paulista também tinha diversões noturnas, como bailes, sendo os mais concorridos o do Palácio do Governo, então localizado no Pátio do Colégio após a desapropriação dos bens dos jesuítas. A vinte passos da sede do governo ficava o teatro em que D. Pedro, com a sociedade paulista, comemorou na noite de 7 de setembro de 1822  o “Grito” que deu no Ipiranga, sendo aclamado pelo padre Idelfonso Xavier o “Primeiro Rei do Brasil”. Na época, a sociedade teatral começava a se organizar. Os escravos e prostitutas colocados no palco anteriormente, já davam lugar a artistas mais experientes. Sim, eu falei em prostitutas; se é a mais antiga das profissões, não podia deixar de falar sobre as que a praticavam na São Paulo de Piratininga.

As prostitutas paulistas do começo dos 1800 seriam virgens nos dias de hoje! Elas só apareciam à noite atrás de tropeiros. Cobertas por amplos capotes de lã, deixavam somente parte do rosto à mostra. Vindas, geralmente, de muito longe, davam um toque oriental à noite paulista mal iluminada. O viajante francês Saint-Hilaire afirmava que elas passeavam lentamente pelos caminhos ermos da cidade, jamais abordando ninguém. Não conversavam nem entre elas, e Saint-Hilaire atestava que nada tinham do cinismo e descaramento das suas colegas de profissão francesas.

A peça que foi apresentada à D. Pedro na noite de 7 de setembro de 1822 no teatro, e que ele não ficou até o fim para assitir, chamava-se “O Cavaleiro de Pedra”, uma história a respeito do célebre amante Don Juan. A peça foi imortalizada por Mozart na ópera “Dom Giovani”, na qual Leporello, empregado de Giovanni, conta que seu mestre tinha, só na Espanha, “Mille e Tre” amantes. D. Pedro, que ficaria famoso pelas suas, sendo a mais famosa a nossa Titília, tinha bem mais o que fazer naquela noite além de ouvir sobre o caso amoroso dos outros. Segundo alguns relatos, tinha pressa em ver Domitila, com quem já tinha “ficado” em 29 de agosto, dias depois de ter entrado na cidade.

Do Palácio, no Pátio do Colégio, ele governou São Paulo por 15 dias, apaziguou os ânimos políticos dos bernardistas x andradistas, convocou novas eleições. Mas o que levou mesmo daqui foi a lembrança de um grande amor que duraria sete longos e escandalosos anos. Como não assistiu a peça até o final, não aprendeu o mais importante segredo de Don Juan: nunca se apaixonar por suas amantes.

Entrevista no CastZone sobre o livro Titília e o Demonão

Confiram em: http://www.castzone.com.br

A Burrocracia e a Pesquisa Histórica

Recentemente o escritor Laurentino Gomes, em um artigo do seu blog, comentou sobre as cartas que descobri em Nova York, publicadas no livro “Titília e o Demonão“, e lançou a pergunta: “A quem interessa esconder o passado?”.

Envolvido nas pesquisas para a conclusão da biografia “Domitila de Castro, a verdadeira história da Marquesa de Santos”, me deparei com a mesma questão levantada pelo autor de “1808” e “1822”. Em um livro chamado “História do Império: O Primeiro Reinado”, de Tobias Monteiro, o autor lança uma nota de rodapé um tanto quanto hermética:

Em país estrangeiro há, em mãos de uma sociedade de estudos históricos, preciosa coleção de cartas de D. Pedro I a Domitila, que o A. durante cerca de vinte anos debalde procurou fazer copiar, sem vencer a obstinação do respectivo presidente, insensível aos mais valiosos pedidos de compatriotas seus. Talvez um dia o exame desses documentos algo esclareça acreca deste assunto, a menos que eles não sejam de certa espécie, inconvenientes à publicidade.”

Decifrando: Alberto Rangel, o primeiro historiador dos amantes, soube que na Hispanic Society haviam cartas de Pedro para Domitila, mas Mr. Huttington, criador e presidente da instituição até sua morte, na década de sessenta do século passado, obstinadamente, sem razão alguma, impediu o pesquisador de ter acesso às cartas que eu reencontrei. Tal como Moisés diante da Terra Prometida, Rangel foi impedido, pela censura de um estrangeiro, de ver completa a obra que lhe consumiu mais de meio século, uma publicação contendo todas as cartas conhecidas trocadas entre o casal.

No Brasil não precisamos de censura para que a roda da pesquisa trave. Temos nossa herança lusitana: a Burrocracia. Até estudantes do ensino fundamental sabem como algumas bibliotecas e Centros Culturais em nosso país funcionam, com raras e gloriosas exceções. Se o microfilme está funcionando, não existe papel para tirar cópia do artigo de que você precisa; se tem papel, é a máquina que está quebrada e não tem previsão de conserto “porque o administrativo ainda não teve tempo de mandar uma solicitação para que seja feita uma licitação”… Com a copiadora idem!

Determinados museus, como o Museu Imperial, em Petrópolis, com o seu excelente atendimento a distância, pertencem a um mundo a parte. Tudo funciona, prazos são cumpridos, e o pessoal atende sempre com simpatia e prestatividade. Me iludi terrivelmente. Ao ser mimado por eles, imaginei que outros arquivos federais funcionassem do mesmo modo… “Ledo e ivo engano”, parafraseando Cony. Em alguns você simplesmente perde a viagem, como recentemente ocorreu, pois me atrevi a aparecer, no dia de atendimento ao público de um arquivo, sem marcar hora – no site da instituição não dizia que isso era necessário. Os funcionários que deveriam estar realizando atendimento encontravam-se todos em um imenso salão cheio… de moscas. Uma atendente lia catálogo da Natura, a outra lixava a unha, e um terceiro não desgrudava do seu celular pelo qual enviava sms. Quanto a mim, tive que voltar com hora marcada…

Em outras instituições, já passei por um trabalho gigantesco de identificação. Como não pertenço à USP ou a alguma universidade, e pela minha idade, que vergonha, nem professor sou, me identifico como mero e simples “pesquisador independente”. Os atendentes ficam ao redor como se a qualquer momento você fosse enfiar um documento raro no bolso. Pena que o extremo cuidado é só com os consulentes. Já foi mais do que provado pelas notícias de jornais que os saques ocorridos em instituições brasileiras, cujos produtos, não raro, vão parar em leilões no Brasil e no exterior, são praticados de dentro para fora. Estagiários, ou até mesmo presidentes dessas instituições, numa prática muito comum no país, confundem o público com o privado, e o pobre do historiador de final de semana é que paga o pato…

A censura de documentos no Brasil prevalece? Se prevalecer, provavelmente, haverá algum burocrata de plantão que fará com que a censura tenha que preencher tantas vias necessárias para que seja impedido determinado documento de ser exposto que, quando o trabalho finalmente terminar, o documento já terá sido corroído pelas traças…